Hoje dedicarei algum tempo a uma figura que estudei recente mas muito pouco profundamente. O ónus. Diz-se que o ónus é algo como uma necessidade de realizar algo para obter uma vantagem à qual sujeito tem direito. Por outras palavras, o sujeito terá direito a tal vantagem se proceder de um modo X. Apesar de, segundo parece, no Direito Processual Civil esta figura ser muito utilizada e configurar-se dum modo um pouco diferente do que estou habituado a estudar em TGDC ou em Direito das Obrigações, e sendo certo que nada sei dessa matéria penso que em nada tal facto prejudicará aquilo que tenho a dizer sobre este assunto, na medida em que pretendo definir o ónus como uma figura na qual o dever não é uma característica, e existe muito para dizer sobre isso. Dizer isto não significa que não exista dever no ónus - apenas que não existe sempre. Tal como se diz que a coerciblidade não é característica da ordem jurídica, o que não implica que esta não esteja muitas vezes presente.
Começo por distinguir o dever de que falo - não se trata aqui de um dever como um dever da ordem ténica - para construir um prédio seguro devem-se construir fundações assentes em terreno não flutuante ou movediço. Nem de uma mera implicação da Natureza, expressa pelo estudo dos técnicos - pela humidade de hoje, esta noite deve chover. Ou seja, não se trata do que se deve fazer para obter a vantagem - trata-se de existir ou não um dever de fazer o que se deve fazer para obter uma vantagem. Analogamente, tratar-se-ia não do dever, da necessidade, de estudar para ter bons resultados, mas da dúvida sobre se existe um dever de ter bons resultados que resulte num dever de estudar in order to chegar aos bons resultados
Existe ou não um dever no ónus - vamos começar por um exemplo.
Suponhamos que contratei um serviço de Internet (relembre-se Obrigações, prestações duradouras periódicas) pelo qual pago 29.9 euros mensais. Foi também acordado que pagaria 5 euros por cada 100mb que consumisse, em termos de downloads, a mais do que o limite estipulado no contrato. Ora, eu nunca ultrapassei os limites - não gosto de fazer downloads e uso a Internet apenas para ler o jornal. Fico sempre muito áquem dos limites, que são muito pouco restritivos, constantes do contrato. Fui de férias no fim do mês, quando apenas faltavam 3 dias para a contagem final dos downloads efectuados, que define se tenho ou não de pagar algo extra consoante tenha ou não ultrapassado o estipulado. Tinha ainda imensos downloads por fazer. Quando voltei de férias, vi que tinha deixado o computador ligado. Não tinha nenhum browser como o Internet Explorer ligado (no meu caso, seria mais o Mozilla Firefox ou o Opera, mas é indiferente), nem nenhum programa a correr. Tudo impecável. Quando chega a conta da Internet, cobram-me 5 euros a mais por eu ter gasto 100mb a mais do que o tarifário base - o que seria justo e pagaria de bom grado (ou mau grado, é indiferente)- se eu de facto tivesse gasto esses 100mb.
Penso eu então, que sou rico, pois ganhei há uns anos oitocentos mil contos, em moeda antiga, no EuroMilhões, e hoje em dia sou um advogado de sucesso - não estou para me chatear, pago os 5 euros e acabou a questão. Dizem-me algumas pessoas que não pode ser assim - o direito procura a Justiça, pelo que eu devo reclamar e não pagar esses 5 euros. Ora, mas então impende sobre mim o ónus de provar que não gastei esses 100mb. E que chatice ter deixado o computador ligado - vai ser mais dificil de provar pela possibilidade de intrusão no meu computador por um vizinho. No entanto, eu que até tinha sucumbido a esses conselhos, perdi a vontade ao relembrar já tenho tanto que fazer, passo pouco tempo com a família, não quero estar uma tarde a recolher logs do computador, e justificar que não posso ter gasto esses MB's por ter estado fora e ainda ter bastante crédito em termos de transferências antes de sair do país, e de usar protecções anti Hacker XPTO, firewall e passwords para entrar na rede - e veja-se, sou antiquado e nem rede sem fios tenho, pelo que não há hipotese nenhuma de entrada abusiva por parte de outrem no meu computador. Metade daqueles que me aconselharam concordam comigo, mas outros, persistentes, insistem: fazes isso tudo, não pagas os 5 euros, e pedes uma indemnização à operadora pelo dinheiro que perdeste com issso tudo. Ao que eu respondo: "Eu quero é estar com a minha família, pah! Deixem lá isso - não é pelo dinheiro, não me quero é chatear nem perder tempo que podia usar para estar com a minha filha". Sobram alguns, os mais puritanos, que dizem que o dever é característico do ónus, pelo que eu devo mesmo levar a minha avante, e se quiser, pedir indeminização por danos morais. Eu, já chateado, digo "Percebam uma coisa: o juiz que decidir quanto dinheiro recebo por danos morais alguma vez vai conseguir restituir a tarde que perdi com a minha filha no jardim da Gulbenkian? Eu não quero dinheiro, eu sou rico, quero é ser feliz" - como todos sabem, há casos em que a indeminização nunca poderá cobrir, mas apenas ajudar ou compensar de forma deficitária o dano que foi feito (ex: morte por negligência). Dos poucos que sobraram, alguns aceitam a minha argumentação - outros acham que não sou um homem com bons princípios. Ao que eu digo - haverá justiça maior do que aquela que me deixa decidir o que fazer quando sofro uma entrada na minha esfera privada? Na minha bolha Actimel? Há algo mais justo, justo para a pessoa que sofreu, do que ter a protecçao do direito e servir-se dela para minorar tudo o que sofreu? E, se neste caso, a melhor maneira é deixar a operadora levar os meus 5 euros, o direito não tem de me obrigar a fazer o contrário, Porque o direito interveio neste caso para me proteger, pelo que o interesse mor é a minha protecção - claro que existem argumentos relativos à protecção da comunidade e da segunraça jurídica e a necessidade de fomentar a eficiência nas trocas de serviços, etc - mas todos esses são supletivos em relação ao meu bem estar, à justiça do caso concreto, relativa ao dano que sofri. Não devo por isso ser julgado por me ter abstido de tomar medidas, quer jurídica quer moralmente, na medida em que fazê-lo, perseguir os cinco euros, iria colidir contra outros principios mais importantes para mim, como o de realização social, educar os filhos, passar tempo com eles, etc."
Obviamente que isto é o caso extremo - há quem diga que é um poder-dever. Admito que nunca gostei muito deste termo, mas também nunca pensei muito no porquê de isso acontecer. Recordo-me de se falar muito disso a constitucional por causa das competências do Presidente da República, etc.
Gostaria de pensar que, quando a doutrina fala no ónus como a "necessidade de x para obter y", se refira não a um dever jurídico, mas à tal conduta que é necessário que se tenha para obter certa vantagem - por outras palavras, um dever de conduta para obter y, mas nunca um dever de fazer x - isso ficaria à escolha de cada um. É a diferença entre poder fazer ou não fazer algo ou ter de o fazer (imagine-se a diferença entre uma norma com um operador deôntico permissivo e outra com um operador deôntico impositivo) e a diferença entre, depois de se decidir fazer, dizer como se deve fazer (imagine-se um operador deôntico e uma estatuição que formem algo como isto: deve-se proceder de modo x y z).
Continuando na busca, em que medida poderá o "dever" ser característico do ónus? Poder-se-ia argumentar que, deste modo de destrinçar as coisas pormenorizadamente resulta que nada é característica de nada. Vamos então ver figuras alternativas para contestar isto. Linguisticamente, faculdade parecer-me-ia um bom nome - na realidade, não pode ser usado dado que a maioria da doutrina já usa a faculdade para outras hipoteses (nomeadamente, Menezes Cordeiro, conjunto de poderes). Será então um poder? Será uma permissão? Será uma possibilidade? Apesar de estes três exemplos não significarem obviamente o mesmo, parecem-me mais credíveis que um dever. Uma ressalva para a permissão, que não me parece ser um bom termo na medida em que a conduta adjacente à figura do ónus não é mais ou menos permitiva do que qualquer outra conduta considerada normal e conforme à lei, bons costumes, etc. Ou seja, é uma necessidade no sentido de "para teres isto faz aquilo" e uma possibilidade na medida em que "se quiseres isto podes fazer aquilo"
Continua...
Começo por distinguir o dever de que falo - não se trata aqui de um dever como um dever da ordem ténica - para construir um prédio seguro devem-se construir fundações assentes em terreno não flutuante ou movediço. Nem de uma mera implicação da Natureza, expressa pelo estudo dos técnicos - pela humidade de hoje, esta noite deve chover. Ou seja, não se trata do que se deve fazer para obter a vantagem - trata-se de existir ou não um dever de fazer o que se deve fazer para obter uma vantagem. Analogamente, tratar-se-ia não do dever, da necessidade, de estudar para ter bons resultados, mas da dúvida sobre se existe um dever de ter bons resultados que resulte num dever de estudar in order to chegar aos bons resultados
Existe ou não um dever no ónus - vamos começar por um exemplo.
Suponhamos que contratei um serviço de Internet (relembre-se Obrigações, prestações duradouras periódicas) pelo qual pago 29.9 euros mensais. Foi também acordado que pagaria 5 euros por cada 100mb que consumisse, em termos de downloads, a mais do que o limite estipulado no contrato. Ora, eu nunca ultrapassei os limites - não gosto de fazer downloads e uso a Internet apenas para ler o jornal. Fico sempre muito áquem dos limites, que são muito pouco restritivos, constantes do contrato. Fui de férias no fim do mês, quando apenas faltavam 3 dias para a contagem final dos downloads efectuados, que define se tenho ou não de pagar algo extra consoante tenha ou não ultrapassado o estipulado. Tinha ainda imensos downloads por fazer. Quando voltei de férias, vi que tinha deixado o computador ligado. Não tinha nenhum browser como o Internet Explorer ligado (no meu caso, seria mais o Mozilla Firefox ou o Opera, mas é indiferente), nem nenhum programa a correr. Tudo impecável. Quando chega a conta da Internet, cobram-me 5 euros a mais por eu ter gasto 100mb a mais do que o tarifário base - o que seria justo e pagaria de bom grado (ou mau grado, é indiferente)- se eu de facto tivesse gasto esses 100mb.
Penso eu então, que sou rico, pois ganhei há uns anos oitocentos mil contos, em moeda antiga, no EuroMilhões, e hoje em dia sou um advogado de sucesso - não estou para me chatear, pago os 5 euros e acabou a questão. Dizem-me algumas pessoas que não pode ser assim - o direito procura a Justiça, pelo que eu devo reclamar e não pagar esses 5 euros. Ora, mas então impende sobre mim o ónus de provar que não gastei esses 100mb. E que chatice ter deixado o computador ligado - vai ser mais dificil de provar pela possibilidade de intrusão no meu computador por um vizinho. No entanto, eu que até tinha sucumbido a esses conselhos, perdi a vontade ao relembrar já tenho tanto que fazer, passo pouco tempo com a família, não quero estar uma tarde a recolher logs do computador, e justificar que não posso ter gasto esses MB's por ter estado fora e ainda ter bastante crédito em termos de transferências antes de sair do país, e de usar protecções anti Hacker XPTO, firewall e passwords para entrar na rede - e veja-se, sou antiquado e nem rede sem fios tenho, pelo que não há hipotese nenhuma de entrada abusiva por parte de outrem no meu computador. Metade daqueles que me aconselharam concordam comigo, mas outros, persistentes, insistem: fazes isso tudo, não pagas os 5 euros, e pedes uma indemnização à operadora pelo dinheiro que perdeste com issso tudo. Ao que eu respondo: "Eu quero é estar com a minha família, pah! Deixem lá isso - não é pelo dinheiro, não me quero é chatear nem perder tempo que podia usar para estar com a minha filha". Sobram alguns, os mais puritanos, que dizem que o dever é característico do ónus, pelo que eu devo mesmo levar a minha avante, e se quiser, pedir indeminização por danos morais. Eu, já chateado, digo "Percebam uma coisa: o juiz que decidir quanto dinheiro recebo por danos morais alguma vez vai conseguir restituir a tarde que perdi com a minha filha no jardim da Gulbenkian? Eu não quero dinheiro, eu sou rico, quero é ser feliz" - como todos sabem, há casos em que a indeminização nunca poderá cobrir, mas apenas ajudar ou compensar de forma deficitária o dano que foi feito (ex: morte por negligência). Dos poucos que sobraram, alguns aceitam a minha argumentação - outros acham que não sou um homem com bons princípios. Ao que eu digo - haverá justiça maior do que aquela que me deixa decidir o que fazer quando sofro uma entrada na minha esfera privada? Na minha bolha Actimel? Há algo mais justo, justo para a pessoa que sofreu, do que ter a protecçao do direito e servir-se dela para minorar tudo o que sofreu? E, se neste caso, a melhor maneira é deixar a operadora levar os meus 5 euros, o direito não tem de me obrigar a fazer o contrário, Porque o direito interveio neste caso para me proteger, pelo que o interesse mor é a minha protecção - claro que existem argumentos relativos à protecção da comunidade e da segunraça jurídica e a necessidade de fomentar a eficiência nas trocas de serviços, etc - mas todos esses são supletivos em relação ao meu bem estar, à justiça do caso concreto, relativa ao dano que sofri. Não devo por isso ser julgado por me ter abstido de tomar medidas, quer jurídica quer moralmente, na medida em que fazê-lo, perseguir os cinco euros, iria colidir contra outros principios mais importantes para mim, como o de realização social, educar os filhos, passar tempo com eles, etc."
Obviamente que isto é o caso extremo - há quem diga que é um poder-dever. Admito que nunca gostei muito deste termo, mas também nunca pensei muito no porquê de isso acontecer. Recordo-me de se falar muito disso a constitucional por causa das competências do Presidente da República, etc.
Gostaria de pensar que, quando a doutrina fala no ónus como a "necessidade de x para obter y", se refira não a um dever jurídico, mas à tal conduta que é necessário que se tenha para obter certa vantagem - por outras palavras, um dever de conduta para obter y, mas nunca um dever de fazer x - isso ficaria à escolha de cada um. É a diferença entre poder fazer ou não fazer algo ou ter de o fazer (imagine-se a diferença entre uma norma com um operador deôntico permissivo e outra com um operador deôntico impositivo) e a diferença entre, depois de se decidir fazer, dizer como se deve fazer (imagine-se um operador deôntico e uma estatuição que formem algo como isto: deve-se proceder de modo x y z).
Continuando na busca, em que medida poderá o "dever" ser característico do ónus? Poder-se-ia argumentar que, deste modo de destrinçar as coisas pormenorizadamente resulta que nada é característica de nada. Vamos então ver figuras alternativas para contestar isto. Linguisticamente, faculdade parecer-me-ia um bom nome - na realidade, não pode ser usado dado que a maioria da doutrina já usa a faculdade para outras hipoteses (nomeadamente, Menezes Cordeiro, conjunto de poderes). Será então um poder? Será uma permissão? Será uma possibilidade? Apesar de estes três exemplos não significarem obviamente o mesmo, parecem-me mais credíveis que um dever. Uma ressalva para a permissão, que não me parece ser um bom termo na medida em que a conduta adjacente à figura do ónus não é mais ou menos permitiva do que qualquer outra conduta considerada normal e conforme à lei, bons costumes, etc. Ou seja, é uma necessidade no sentido de "para teres isto faz aquilo" e uma possibilidade na medida em que "se quiseres isto podes fazer aquilo"
Continua...
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