Sabendo que vai ser difícil, aqui vai. E veja-se o "direito privado" a entrar neste blog...

Porque é que não se deve distinguir, para efeitos de responsabilidade civil, a negligência consciente da negligência inconsciente e, por outro lado, se deve distinguir entre o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual?

Define-se a negligência consciente como uma conduta na qual o agente está ciente de que é possível que o facto causador de dano venha a acontecer, derivado da sua conduta, mas actue sem dar importância a isso, eventualmente convencendo-se de que não irá acontecer, e a negligência inconsciente pela não percepção por parte do lesante que a sua conduta possa lesar outrem. Ora, esta distinção, apesar de ser retirada do artigo 14º e 15º do C.P., tem de ser vista com muito cuidado. Com que explicação deverá ser punida mais violentamente uma pessoa que, pensando que por guiar em excesso de velocidade, ainda assim o faça, do que uma que nem pense nisso? Uma pessoa completamente irresponsável, apesar de completamente sã, seria responsabilizada em menor grau do que uma pessoa que achasse que essa sua velocidade excessiva, em princípio, não causaria danos a ninguém, apesar de, por ser capaz, ter pensado sobre isso. Claro que o Direito pode exigir de cada um o que cada um pode dar, mas essa máxima aplicar-se-ia apenas a pessoas manifestamente incapazes. Como dizia Heinrich Horster, o Direito não deve beneficiar os incautos e os imprevidentes. Porque, note-se, em termos de danos, o resultado será o mesmo - o que se trata aqui (e bem, visto que esse ponto também deve relevar) é uma valoração subjectiva do estado do sujeito. O problema é que essa valoração é demasiado subjectiva para funcionar como critério de gradação da ressarcibilidade.

Agora, seguindo outra máxima, a de não criticar sem apresentar sugestões, a negligência inconsciente deve ser substituida pela ideia de homem médio, por uma valoração objectiva daquelas circunstancias, em que o interprete aplicador terá de verificar se, naquelas circunstâncias, era ou não exigivel que o lesante tivesse pensado nelas. Se não, estamos perante negligência inconsciente. Se sim, estamos perante negligência consciente - alteração esta que acarreta um acrescento à negligência inconsciente - esta passa a englobar não só os casos em que o lesante pensou na hipótese do dano e nada fez que alterasse a sua conduta, mas também nos casos em que o devia ter feito, por lhe ser exigivel tal.

Já quanto às modalidades de dolo, nada há a apontar na sua classificação: o dolo directo representa a conduta do agente directamente e propositadamente dirigida a causar o dano, o dolo necessário a conduta que, não tendo como fim o causar o dano, implica-o e o agente aceita-o totalmente, e o dolo eventual, no qual o agente verifica que é possível que a sua conduta cause um dano, mas conforma-se com a sua eventual verificação e age na mesma.

823 I do BGB

Alguém me pode explicar o porquê do 823, I do BGB enunciar, taxativamente, uma série de direitos cuja violação implica o correspondente ressarcimento do dano causado, e no fim deste, como que destruindo tudo o que fez antes, adicione a clausula aberta ou conceito indeterminado "e outros direitos"? Só se o legislador achou mesmo por bem remeter para a doutrina e a jurisprudência quais os direitos que devem constar o preceito, ou considerou que era uma área na qual se previa uma grande evolução pelo que salvaguardou a possibilidade de preenchimento desse preceito através dessa "válvula de escape". Mas a verdade é que o que acontece é a destruição total da natureza taxativa-enunciativa do preceito, nada ao estilo técnico e avançado do direito alemão (I guess).

Sem surpresa, o 483º do CC português é a soma do 823 I e II alemão. De qualquer modo, antes imitar os alemães no que eles são bons.

Personal reminder: tenho mesmo de aprender alemão. Começa a fazer falta.

Pergunta

Pergunta a mim próprio (pleonasmo?): para que serve este blog?

Depois de tanto falar de Hart, e da sua norma de reconhecimento, pergunta-se: porque é ela importante? Qual a relevância de saber de onde vem o Direito, como é que ele se torna legítimo, etc?

É uma questão até bastante simples mas para a qual me parece ser necessária uma resposta para completar os posts anteriores.

Basicamente o que se passa é que para o Direito ser visto como uma ciência, que o é - ou, de modo mais correcto, para a análise do Direito constituir uma ciência, é necessário que se processe de forma lógica e científica, por muito pleonásmico que possa parecer. Com esse intuito, Kelsen constrói o Direito uma uma série de premissas baseadas noutras, ou, mais uma vez, de modo mais preciso, uma série de normas jurídicas fundadas numa outra, hierárquicamente superior. O problema é quando chegamos ao topo, e verificamos que essa cascata, que percorremos agora em sentido ascendente, tem de parar. E Kelsen fá-lo com a grundnorm, a norma fundamental, hipotética e pressuposta. Não existe, não tem qualquer conteúdo ou função (pelo menos assim me parece) que não seja validar a norma imediatamente abaixo na cadeia hierárquica (normalmente, a constituição). O problema desta construção é a de que o Direito não apenas regula condutas, mas surge também da actividade humana e é nela que se funda e legitima. E as críticas feitas à concepção de Kelsen por ser demasiado formalista e afastada da realidade social subjacente ao Direito são vencidas por Hart, sem se perder essas mesmas inferências lógicas de norma em norma, formando um sistema lógico, que pode ser analisado como ciência.

O que Hart propõe é que essa norma fundamental, a norma original do sistema, aquilo a que ele chama norma de reconhecimento, seja fundada na convicção da população de que aquela pessoa, aquele órgão, o que for, deve ter legitimidade para legislar. E essa norma põe, no sentido técnico do termo, o sistema em acção. Ou seja, a Constituição ou qualquer norma que seja a norma hierarquicamente mais elevada (dentro das normas com conteúdo efectivo de conformação social) é legitimada e "posta" pela norma de reconhecimento. Assim, explica-se com um substracto social o sistema jurídico, salvaguarda-se a sua abordagem positivista e normativista sem pôr em causa o Direito como ordem do Homem para o Homem. Hart é assim dos maiores génios do Direito, ainda que, como cumpre dizer, as suas concepções provavelmente não teriam sido possível sem o extremismo de Kelsen que permitiu a expansão de horizontes em termos de definição do direito pela corrente positivista e normativista.

Fica a explicação, não muito precisa nalguns termos, mas de simples compreensão.

O Direito é coercivo

Esquecendo as divergências sobre o conceito de coação, coerção, etc, vou defender a coercibilidade de todo o direito. Ou seja, a premissa base é a de que todo o direito é coercivo. Para o fazer, preciso de definir coercivo, e definir esse conceito com alguns ajustes face à doutrina tradicional, na medida em que a coercibilidade a que aqui me refiro não é necessariamente a uso da força. Pergunte-se, então, o porquê de usar este termo. De facto, talvez não seja o mais correcto à partida, mas adiante perceber-se-à o porquê.

Toda a conduta desconforme ao Direito vai levar, ou devia levar, na medida em que o Direito trata do sistema ideial - o facto de alguém matar outrem e não ser descoberto não quer dizer que não exista punição para essa conduta - a uma aplicação de uma sanção coerciva. Os exemplos da praxe apresentam-se de fácil compreensão. Se A mata, A é punido, que é o mesmo que dizer que se a previsão é preenchida pela conduta, a estatuição é um imperativo lógico, e ocorre automaticamente. Relembre-se ainda, quanto à discricionariedade, o porquê de não existir discricionariedade na previsão das normas: por muito que a previsão contenha conceitos indeterminados, a decisão final vai ser sempre de sim ou não - a subsunção do caso concreto à norma acciona ou não a estatuição. Em face de conceitos indeterminados claro que o aplicador da norma verá o seu espaço de manobra aumentar, mas nem por isso deixa de se poder dizer que a situação concreta preenche a previsão, e verifica-se a estatuição, ou, pelo contrário, a previsão não é preenchida e a estatuição não se verifica. Continuando, nestes exemplos básicos é facil ver que a ordem é coerciva.

Em exemplos mais "civilistas", a questão complica um pouco. Se A tem uma obrigação e não a cumpre, é ordenado a A que pague uma indemnização. Se A não o fizer, o seu património será vendido para a obtenção de liquidez para saldar a dívida. Esta internveção consiste sempre no uso da força, ou seja, a venda de bens de A é obviamente conseguida conquanto se utilizem meios coercivos (ou conquanto haja a hipótese de os utilizar de A resistir).

Se A e B celebram um contrato formalmente insuficiente, esse contrato padece de um desvalor. Esse desvalor, se não está directamente ligado à coercibilidade, está sempre indirectamente ligado a ela, na medida em que, face à ordem jurídica, esse contrato não existirá, ou existirá viciado, e a sua validade está condicionada. O que implica que o exercício dos direitos imanentes desse contrato não poderá ser exercido com o apoio da ordem jurídica, ou seja, a ordem jurídica não empresta a sua força coerciva para cumprimento desse contrato. O racicionio aqui é ao contrário, na medida em que a ordem jurídica não actua coercivamente precisamente porque excluiu do sistema jurídico esse acto viciado, ou pelo menos excluiu-o na medida do seu desvalor.

A própria autonomia privada deriva de uma permissão normativa genérica de produção de efeitos jurídicos. Fora dela, os efeitos ou são proibidos, ou não são jurídicos. Aos não jurídicos a ordem jurídica nada tem a dizer, e aos proibidos ela atribui-lhes um desvalor que as marca como portadoras de um vício, que limitará a sua produção de efeitos, por exemplo.

As normas não são vinculativas porque são. E está na altura de rever a concepção que apresentei acima. De facto, esta coercibilidade de que falei é algo mais, é uma coercibilidade num sentido muito lato, consubstanciado em desvalores de normas, quando estas desrespeitem outras normas, ou uma sanção coerciva de condutas, quando estas vão contra as normas. Um acto legislativo que não cumpra os requisitos normativos nem entrará em vigor.

O Direito é para ser cumprido porque tem por trás dele o monopólio coercivo do Estado. Tal como Hart explica, numa formulação não isenta de possíveis críticas (críticas essas que até eu formulo), mas ainda assim provavelmente a melhor concepção existente até hoje, o Direito provém duma norma de reconhecimento, pela qual a população de um certo Estado permite à pessoa X, ao órgão Y, etc, legislar. E a partir daí tudo funciona num sistema lógico, sob a égide dum monopólio coercivo que é detido pelo destinatário dessa norma de reconhecimento, dessa norma que mostra que a população confia a esse destinatário o seu futuro em termos de regulação jurídica. Em suma, toda a conduta desconforme ao Direito resultará num desvalor da mesma, se esta tiver relevância jurídica, ou eventualmente numa restituição da paz jurídica através da força, em última instancia.

(A precisar de ser reorganizado e pensado, mas para já serve)

Tecnologia do Direito e Normas

Poderão as decisões jurídicas (sejam de tribunais, sejam decisões administrativas), ou seja, tudo aquilo que, sendo jurídico, não é norma (por ser individual), ser vistas como a tecnologia do direito? Ou seja, uma espécie de concretização tecnológica do direito enquanto ciência? Uma ideia a pensar (que, note-se, não é minha...).

A pensar também é a questão de uma "norma" individual ser ou não uma norma (para os mais distraídos, não falamos aqui de ser lei, estamos num plano diferente, o plano deôntico, ou seja, não falo do involucro da norma, mas da norma per si no mundo das normas).

O Conceito de Direito


Provavelmente o melhor livro que um estudante de Direito pode ler. Por três simples razões:

1. É barato (comprei o meu na feira do livro da Gulbenkian por 6 euros, mas custa normalmente 12 euros)
2. Está traduzido em português (versão original intitulada "The Concept of Law).
3. É genial. No verdadeiro sentido da palavra.

A compreensão geral do Direito que surge com a leitura deste livro, nomeadamente a norma de reconhecimento e as normas primárias e secundárias é impreterível.

Tem cerca de 350 páginas, e foi escrito por Herbert Hart (H.L.A. Hart), jurista inglês.

Começando pela parte inicial do tema que (supostamente) ia apresentar na oral de Direito Administrativo.

"A delegação de poderes está definida no CPA, pelo que não é necessário gastar muito tempo com este aspecto. Digamos apenas que é um acto que possibilita ao delegado exercer competências do delegante, sujeito a determinados requisitos (que são 3). Peno que o facto da delegação ser intuito personae é criticável. Como ensinava Marcello Caetano, a delegação é um acto do órgão, não do titular do mesmo. Aplicando este conhecimento ao delegado, também é de defender que, devido ao fenómeno da institucionalização, a delegação devesse ser feita a um órgão e não tendo especificamente em conta o seu titular

A questão da possibilidade da delegação total de poderes surge em quase todos os manuais e teses sobre o assunto. Mas nem sempre é respondida da melhor maneira. A doutrina é unânime, tanto quanto apurei, em não aceitar a delegação total de poderes. Mas normalmente dá-se isso como dado adquirido, talvez por ser tão intuitivo. Por exemplo, Sérvulo Correia nas “Noções de Direito Administrativo”, 1982, ponto 23.2 afirma-o sem explicar, remetendo para a doutrina italiana de Fazio e francesa de Vedel. Ainda assim, a intuição não chega e importa tentar justificar essa tendência. Vedel, em 1976, defende a impossibilidade da delegação total de poderes por a existência de um superior/inferior, ou seja, a não delegação desses poderes, ser um imperativo constitucional na salvaguarda dos direitos dos administrados. (poder este que nada tem que ver com o poder de hierarquia). Refere, ainda, em França, dois tipos de delegação, uma com os poderes comuns de avocação e revogação, e abstracta, e outra equivalente à delegação de assinatura, essa sim intuito personae. Garcia de Entérria e Tomás-Ramon Fernandez defendem, face ao ordenamento espanhol, a impossibilidade de delegação total de competências (ainda que o façam relativamente à delegação em comunidades autónomas). Os argumentos (na pg. 329 da edição de 1997) são os de que não se pode alterar a ordem constitucional pela delegação (a delegação completa resultaria na possibilidade de moldar através de um acto infra constitucional as competências estabelecidas por normas supra-legais), e a necessidade de manter a unidade do Estado. Este argumento, apesar de importante para a parte da delegação total, não responde a uma outra questão importante – o de saber se o poder de delegação é discricionário ou não. Veremos a seguir que esse poder não é totalmente discricionário. Por agora, para a resolução da possibilidade ou não de delegação total de poderes, avançamos com a seguinte explicação: para começar, defendendo a tese da extensão, como defenderemos a seguir, é indiferente a delegação ser total ou não, porque a competência, como é alargada e não transferida, não desresponsabiliza um eventual delegante que, delegando todas as suas competências, nada faça – a competência continua a ser dele, e impõe-se lhe que trabalhe no sentido de as concretizar. Por outro lado, estará a ir contra o interesse público, que supostamente era aquilo que ele tinha de prosseguir. Em terceiro lugar, está a eximir-se das responsabilidades aquando da sua contratação ou quando assume um cargo. Ainda que delegasse grande parte das competências, o dever dele seria zelar pelo bom trabalho do delegado e a resolução de casos quando este esteja sobrecarregado. Relativamente à discricionariedade do acto de delegação de poderes, a resolução terá de passar, como muito no Direito, pelo conflito de normas. Se é verdade que a lei habilitante da delegação permite ao potencial delegante delegar ou não as competências, também é verdade que este poder não é totalmente discricionário. Existe conformação normativa desta liberdade ao nível dos princípios, no sentido em que a partir do momento em que a não delegação leve à violação do princípio da desburocratização (usando um exemplo de Marcelo Rebelo de Sousa , na página 141 do Tomo I do Manual de Direito Administrativo, o artigo 57º do CPA que exige a celeridade dos processos, o que não pode acontecer se o potencial delegante estiver sobrecarregado e, ainda assim, não delegar as suas competências), é preciso repensar a conduta sob pena de, por omissão, se violar uma disposição normativa (Paulo Otero da exemplos de quando é obrigatório delegar, no livro de 1987 sobre a delegação de poderes). Para terminar, a delegação total dos poderes incorreria num contradição lógica: se os poderes de revogação e avocação nascem da delegação, ou seja, são posteriores e existem por causa dela, não podem ser delegados."


Em breve o resto da oral. Isto era a parte introdutória.



A discórdia começa no segundo capítulo, no qual Ross defende que a vigência dos Direito é destinada, prima facie, aos tribunais, e só depois aos particulares. Apesar de ver o Direito como ordem coerciva, não se me afigura correcta esta tentativa - recordemos Hart e a norma de reconhecimento, que deriva das pessoas, que dão o poder ao Direito, ao soberano, aos tribunais, o que for. Não se pode centrar a ideia do Direito nos tribunais, até porque sabemos que o Direito só funciona quando é obedecido maioritariamente de livre e espontânea vontade. Percebe-se o que Ross quer dizer, quando refere que a vigência do Direito é independente da violação deste, mas a meu ver a violação deste, se for consecutiva, sucessiva, reiterada, etc é uma ferida à norma de reconhecimento. O centro da norma têm de ser as pessoas, porque a norma tem também um papel intrutivo, não no sentido de ensinar, mas no sentido de indicar qual a direcção que deve ser tomada para não se ser sancionado. A coercibilidade surge num momento posterior, surge se a condição directamente derivada da verificação da previsão (se A é, B deve ser) não for cumprida. A não é porque B deve ser. B deve ser porque A é. Neste ponto, não estou convencido que tenha razão, pelo que deixo isto uns dias a repousar.

Seguindo os primeiros capítulos do "On law and Justice" de Alf Ross, vamos ver como um simples jogo de xadrez pode, analogicamente, explicar tanto sobre o ordenamento jurídico.

Uma coisa são as jogadas dos jogadores. Outra coisa são as regras do jogo. E outra é a teoria do jogo. Entre dois jogadores experientes, conhecedores da teoria do jogo (e entenda-se teoria do jogo no sentido de todo o desenvolvimento que foi feito sobre o xadrez, livros, teses, experiência própria, etc, que permite que um jogador seja um bom jogador, que conheça o que deve ou não fazer, não sob pena de desrespeitar as regras, mas apenas sob pena de não ganhar o jogo ou de ter um resultado abaixo da melhor performance possível), causaria surpresa que um deles não seguisse a teoria do jogo - por outras palavras, fizesse uma má jogada. Mas nada mais que isso. O outro jogador nao iria, nem poderia, certamente, protestar pela má jogada do outro. Face às regras do xadrez, a o problema é diferente. É de todo lícito a um jogador contestar uma jogada do outro contra as regras. Já não se trata de fazer uma boa jogada dentro das regras, ou seja, seguindo as regras maximizar as jogadas, mas sim de ir contra as próprias regras. Aí, dir-se-ia que a jogada não é permitida. Claro que, para interpretar estas ideias face ao Direito, é preciso algumas alterações, na medida em que a falta de complexidade do jogo de xadrez (não do jogo per si, mas das possibilidades lícitas ou ilícitas de jogar) é infinitamente inferior ao da conformação da vida do Homem, quer pelas milhares de condutas possíveis e indetermináveis, quer pela quantidade de "jogadores" existentes. Daí que não existam, nos jogos de xadrez, vários tipos de desvalores, de sanções, etc - uma jogada é ou não é permitida - se o for, não pode ser contestada, se não o for pode sê-lo (outra questão seria a de saber se o deve ser). Este exemplo tem outra particulariedade genial - dá cabo, de todo, do behaviourismo (i guess). Imagine-se um terceiro jogador, como diz Alf Ross (o exemplo é dele, e tudo isto é mérito dele), que observa apenas o jogo. Poderá nunca chegar a perceber as regras do jogo. Isto porque, se os jogadores conhecerem a teoria do Xadrez, sabem certamente que há jogadas que são melhores que outras. E nunca farão as más. Se essa teoria ou a sua experiência lhes disser que a melhor maneira de começar o jogo é com um peão, e não com um cavalo, o observador externo dos seus comportamentos (behaviour) nunca perceberá que não existe nenhuma regra que imponha que o jogo seja começado com peões. Pensará que essa regra existe.

Continua, á medida que for decifrando o espanhol.

Princípios

Importa agora ver os princípios de outro ângulo do visto no primeiro ou segundo post deste Blog. Interessante ainda é comparar, ainda que, como disse, estejamos perante prismas diferentes, este post com os primeiros. Isto porque me parece que muito do que lá foi dito estará relativamente errado, o que não deixa de ser animador se visto no sentido de evolução. Antes, e como pressuposto, apenas a informação de que a corrente analítica do Direito é fulcral no meu entendimento do mesmo. E comecemos por aí. Aqueles antigos escritos, aquele direito muito denso, mais pela linguagem do que pelo esforço mental exigido, tem de evoluir (note-se que é bem mais difícil mentalmente ler um bom texto analítico do que um bom texto não analítico, mas certamente com frutos merecedores do esforço). O problema desses textos é que, sendo eles próprios antigos, e contendo ideias antigas, se baseiam em ideias anteriores antiquíssimas! E o problema não é apenas esse, é todo o lastro histórico cultural, que é importante, mas apenas na medida em que permita conhecimento e estabilidade, e não cristalização e um pretenso dogma de soluções perenes. O facto é que muito do Direito, maxime o privado, segue uma solução de continuidade, inovando aos poucos (o que, de per se, é positivo face à necessidade de estabilidade), mas sem conseguir agarrar as hipóteses de ruptura, e se o faz, fá-lo temporariamente ou por fases, como um elástico que ora estica ora encolhe. É uma continuação de textos antigos baseados em ideias antigas baseadas em textos antigos baseados em ideias antigas. Nota-se, no entanto, uma evolução positiva recentemente, e um reconhecimento da importância da evolução, quer por parte dos mais novos como dos mais velhos, i.e., um reconhecimento da grande e cada vez maior necessidade do Direito se posicionar o mais "avantgard" possível. A evolução, pensamos, e como mostra o recente banner deste Blog, tem de ser de base, ou melhor, tem de se processar em dois momentos, relacionados num sistema: deve-se aperfeiçoar um regime ao máximo, dando-se primazia à necessidade de estabilidade, e, após se verificar a sua insuficiência, insuficiência essa que é normal e inevitável numa ciência do Homem para o Homem, começar a buscar nas bases as alterações que possam ser feitas. E há toda uma geração de juristas cujas ideias devem ser aproveitadas, independentemente do seu pendor positivista ou não. O que nos interessa aqui não é essa discussão, mas sim os contributos do dito Direito Analítico para o Direito actual. É claro que, face à revolução económica e à influencia de senhores como o Coase, o Mill, o Adams, etc, avançou uma nova vertente, também analítica, mas muito distinta da defendida aqui, por ser constituída por elementos demasiado matemáticos, reduzindo a complexidade humana a algo que não pode ser expresso por meros impulsos ou decisões relativamente racionais; é uma ciência demasiado pertencente ao ser para ser transladada em absoluto para uma ciência do dever ser. Não deixou, contudo, de ser um bom ponto para contrabalançar tendências demasiado clássicas, cuja conjunção deixou a balança num ponto que permitiu estas correntes recentes o avanço exponencial (ainda que já Descartes fosse um mestre analítico). Um aspecto importante para um sistema completo e dinâmico é o estudo dos princípios, e disso trataremos agora.

Alguma doutrina trata os princípios como normas, normas como regras, etc. É de todo útil a precisão terminológica na medida em que permite a apreensão imediata do significado dos termos e ajuda a isolar os factores divergentes entre duas opiniões: quanto menos problemas linguísticos existirem, mais a discussão se irá focar no que realmente interessa - o conteúdo. Então, e sem referências bibliográficas para esta definição, pelo que pode não ser a mais correcta, tentemos: tanto a regra como o princípio são normas, portanto, pertencentes ao mundo do dever ser. O problema do que é exactamente uma norma já transborda deste âmbito na medida em que sobre ele têm implicações posições sobre a natureza do Direito, sobre o Direito positivo/não positivo, etc - mas vamos encará-la como um sentido deôntico, um regulador de condutas. Mais correctamente ainda é a definição de escola, que permite afastar a definição das incertezas da linguagem: Se A é, B deve ser. (note-se, como se refere no Manual de Legística, que é incorrecto outro tempo que não o Presente na estatuição - com efeito, uma vez sanada a condicionalidade da norma pela verificação da previsão, é directa e imediata a aplicação da estatuição. Note-se ainda que não se diz B é, mas sim B deve ser.) Regras são uma maneira objectiva, relativamente concreta, ou densificada normativamente (sem prejuízo do seu carácter em princípio geral e abstracto, o que configura uma outra discussão - para ela, vide Manuais de Introdução ao Direito - Marcelo Rebelo de Sousa, Oliveira Ascenção, Baptista Machado, etc.) de apresentar as normas latu sensu. Os princípios são também normas, mas são menos objectivos, não no sentido de para eles relevar o estado do sujeito, mas no sentido de que há muita maior margem de preenchimento da tatbestand (previsão da norma) de um do que de uma regra, que apresenta uma previsão relativamente rígida. Os princípios, fruto da falta de densificação normativa, são a salvação do Direito, e ao mesmo tempo uma ameaça para ele. Porquê? Porque são como cheques que não podem estar passados em branco. Mas por outro lado têm de o estar. Por um lado, não podem estar passados em branco porque existe necessariamente uma densificação, que tem de ser técnica e não casuística dos mesmos, sob pena de tudo o que se faça seja conforme ao Direito invocando o princípio X. Por outro lado, fruto da falta de densidade, falta essa que é desejável, para capturar nas redes do Direito tudo o que se considere que deva, face a eles, ser capturado, conseguem resolver casos para os quais a intuição jurídica apontava uma resolução, em sintonia com a sistemática do ordenamento - sendo que, em vez de recorrer directamente a argumentos de Direito Natural, como "imperativos de justiça", pode-se recorrer, normalmente, aos princípios. Depois, dependendo das opiniões, existirá ainda um passo, o do Direito Natural, enquanto que para outros a rede termina aí, nos princípios positivos (ou que, não sendo positivos, decorrem do homem, e não de algo supra-humano). Outro problema, que também não tenciono resolver, é saber como densificar os princípios - aliás, saber sabe-se, a discussão recai sobre se o Direito Natural pode entrar logo na densificação dos princípios, ou se o Direito Natural constitui um grupo de princípios depois destes. Irónico é o facto de a dualidade abertura/incompletude dos princípios é, de per se, um choque entre princípios, nomeadamente a necessidade do ordenamento prever todos os casos para resolvê-los de forma justa, e doutro lado a segurança jurídica (sendo que esta justiça tanto pode ser a justiça per se como o simples cumprimento do Direito - o que torna um pouco paradigmática esta ultima posição, que precisa de um acrescento qualquer - senão, um ordenamento apenas com uma norma que dissesse "É proibido apanhar flores", e essa norma fosse cumprida, era um ordenamento extremamente justo - falta algo mais, não sei bem o quê.)

Servem então os princípios como última fileira da ordem normativa, o último reduto, a tropa de elite do Direito. E têm um efeito muito para além desse. Nomeadamente, se duas normas são contrárias, dificilmente uma sobrevirá à outra, salvo se o valor hierárquico for diferente ou a sua entrada em vigor. No entanto, face a dois princípios contraditórios (que os há), um apenas se comprimirá dando espaço ao outro, e parece-me que dará imediatamente espaço a todas as regras que lhe subjazam (considerando regras de valor hierárquico inferior, na medida em que princípios constitucionais parecem ter o mesmo valor. No entanto, isto cria outro problema: aceitar esta ideia significa que as regras acabam por ser mais fortes que os principios, porque face a um principio de igual valor a uma regra, a regra comprimiria o princípio, visto que esta não comprime. Uma ideia a pensar). Os princípios, então, aconchegam-se mutuamente, conseguem caber no mesmo espaço renunciando da sua aplicação na totalidade, fazendo cedências mútuas baseadas na previsão. A previsão dos princípios é muito menos exigente do que a das regras, na medida em que também a sua aplicação tem muito mais maleabilidade a nível de intensidade de resposta. Se as leis da Física estão correctas, e a cada reacção subjaz uma reacção oposta, e de igual intensidade, é fácil ver que quanto mais rígida for a previsão menos casos ela abarca, e mais previsível será o resultado nos casos que abarcar, e nos princípios mais casos abarcará e as suas características específicas serão determinantes na intensidade da resposta, maxime em caso da situação em concreto se enquadrar em duas tatsbestand de princípios contraditórios, onde aí, além da batalha intensidade da previsão/estatuição (interna) existirá uma outra batalha, externa, entre os dois princípios.

Visita a Kelsen

Em 1961, Kelsen diz a Ross, sorrindo: "a discussão entre nós é de um tipo totalmente novo, porque apesar de eu concordar contigo tu não concordas comigo"

Poder-dever

Poder-dever: um resquício jusnaturalista?

Para pensar quando tiver tempo.

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