O artigo 30.º do Código de Procedimento Administrativo.

Artigo 30º

Fixação da competência

1 - A competência fixa-se no momento em que se inicia o procedimento, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.

2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for extinto o órgão a que o procedimento estava afecto, se deixar de ser competente ou se lhe for atribuída a competência de que inicialmente carecesse.

3 - Quando o órgão territorialmente competente passar a ser outro, deve o processo ser-lhe remetido oficiosamente.


Este artigo encerra em si diversas normas, sendo que há uma específica que necessita de análise pormenorizada, por levantar diversas dúvidas. Falamos da norma encerrada no enunciado normativo do número 2 do artigo 30.º do CPA, que dita serem irrelevantes (além das modificações de facto do número 1) as modificações de direito, abrindo a seguir uma excepção para três casos: a) ser extinto o órgão ao qual o procedimento estava afecto, b) deixar este de ser competente, ou c) lhe ser atribuida a competência de que inicialmente carecesse.

À partida, tendo em conta quer a epigrafe (que apesar de não ser uma norma, tem importância a nível sistemático, importante na interpretação da norma), quer o próprio artigo, nomeadamente o seu número primeiro. Ou seja, não parece ser sustentável que o artigo 30.º número 2 se refere à competência – ou seja, às modificações de direito a nível de competência. No entanto, outro entendimento é possível: o de que para a fixação da competência são irrelevantes as modifcações de facto (número 1), mas que o número 2 se refere a qualquer alteração de direito, não só as da competência, entendendo-as como irrelevantes, salvo os casos excepcionados no final do enunciado normativo. E porquê este entendimento? Na verdade, subjacente a ele está uma ideia muito pertinente: a de que se a norma que considera irrelevantes as modificações de direito se cingissem a modificações desse teor relativos apenas à competência, seria esvaziada pela excepção que a mesma contém, porque essa consiste precisamente em tudo o que estava contido inicialmente na norma. O que leva a perguntar duas coisas: a primeira é, inevitavelmente, se de facto não conterá o início do enunciado normativo uma referência não só a modificações de competência, como inicialmente parecíamos inclinados, como também a todas as modificações de direito, sem restrição, face ao referido problema de, em caso contrário, a norma ser totalmente esvaziada; por outro lado, se efectivamente as três sugestões referidas esvaziam as modificações possíveis na competência, porque não escolheu o legislador exceptuar apenas as que se referissem à própria competência. Fica então a questão, a desenvolver depois, sobre qual dos dois o melhor entendimento para o artigo 30.º do CPA.

Falo hoje do conceito de prejuízo, especificamente o do artigo 149.º /1º do C.C.

ARTIGO 149º

(Actos praticados no decurso da acção)

1. São igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da acção nos termos da lei de processo, contanto qua a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito.

(http://www.portolegal.com/CodigoCivil.html)

Suponhamos que efectivamente a interdição vem a ser definitivamente decretada, e tudo o resto que preencha a previsão da norma para accionar a estatuição, e as dúvidas surgem quanto ao conceito de prejuízo. Como concretizá-lo?

Parece óbvio que qualquer má compra, no sentido do preço ser superior ao valor que o produto ou serviço tem para o incapaz cabe neste conceito. O que proponho é a resolução de um caso limite. E posso improvisar:

"António abusa de bebidas alcoólicas e estupefacientes, além de outros vícios. Prevê-se que seja declarado como incapaz, pelo hábito de gastar ordenados inteiros em festas e luxos incomportáveis para o seu rendimento. Não obstante, um dia António faz um óptimo negócio. Compra um carro antigo, cujo valor comercial é de 100.000 euros por apenas 50.000 euros. No entanto, é um carro que apenas consegue vender encontrando um comprador especializado, interessado nesse tipo de mercados. Não obstante ter feito um óptimo negócio, tem agora todo o seu dinheiro "encravado" nessa compra. Quid iuris?"

Parece-me óbvio que o conceito de prejuízo tem de ser considerado latu sensu, e até numa perspectiva duplamente subjectiva: a) atendendo à situação do agente; b) atendendo aos factos que rodeiam a compra (no caso, o facto de ser difícil vender o carro). Parece-m, então, (e digo-o mesmo sabendo que a solução inversa pode trazer alguns problemas de tutela de confiança da contraparte) que no conceito de prejuízo não pode caber apenas uma estrita comparação entre o preço pago e o valor do objecto, mas sim um juízo de adequação e razoabilidade face à falta de discernimento do comprador com este tipo de anomalia.

O mundo antigo. E o novo.

Dizia Goethe: "Com Voltaire, o mundo antigo acaba. Com Rousseau, é o mundo novo que começa."

Esperando por uma conferência sobre o Tratado de Lisboa (muito interessante, num estilo descontraído e intimista, protagonizada por um acessor de Durão Barroso e o Presidente do Instutuo Português de relações Internacionais), "folheei" as prateleiras da Almedina. E encontrei, sem bem saber como, o abaixo referido livro "Direito Público e Sociedade Técnica". Um livro que queria ter há muito tempo, e pondero ler outra vez. Mais uma vez, reitero a excelência do livro. Custou 11 euros. Espero daqui a uns tempos ter o livro autografado.


Comentava outro dia que tinha pena de não encontrar à venda o livro "Direito Público e Sociedade Técnica", um livro jurídico que se lê como um romance. Devorei-o num instante, mas nunca o encontrei à venda. Livro mesmo muito bem escrito e interessante, num estilo despretensioso e agradável. Foi reeditado em 2008, pela Tenacitas. Vale mesmo a pena comprar. É o que eu vou fazer (se o conseguir encontrar).



"A reedição desta obra-prima da literatura jurídica portuguesa é, por si só, um acontecimento jurídico, e cultural. Pouco a pouco, esta obra foi rareando nos escaparates e a sua referência na literatura juspublicística era cada vez mais um registo indirecto colhido noutras leituras. Acontece, até, que, em muitos casos, o motivo da referência era mais a beleza e a plasticidade da prosa de Rogério Soares do que a profunda e meditada análise do Mestre. O "sono da princesa da fábula” ganhou, neste contexto, moda de citação. Este "sono” transportava uma das mais penetrantes suspensões reflexivas sobre o estado da arte da ciência do direito público nos finais da década de sessenta do século passado. Ao colocar-se de novo à disposição do público culto os questionamentos teóricos e doutrinários do Mestre de Coimbra, facilmente nos damos conta que a ciência do direito precisa hoje de um novo olhar semelhante ao que ele nos proporcionou há mais de quarenta anos. Dir-se-ia que seria legítimo pedir a Rogério Soares para voltar à publicidade crítica e reescrever o sono e o sonho da princesa. Sono, afinal, com as mesmas angústias e perplexidades. " por José Joaquim Gomes Canotilho.

Para quem não tenha paciência de ler Kelsen, Ross e Hart (a famosa trilogia), e sinta que, para criticar, é preciso conhecer, aqui está um bom começo.

Passagens retiradas de um artigo de Juliano Aparecido Rinck:
"O positivismo jurídico na analise da doutrina jurídico-filosófica italiana: Desmistificando o conceito de Direito da teoria positivista"


Um: "Il fatto è che l’espressione ‘positivismo giuridico’ non individua un’única concezione del diritto, ma una pluralità di concezioni tra loro(almeno apparentemente) non sempre compatibili."

SCHIAVELLO, Aldo. Il posotivismo giuridico dopo herbert. l.. a. hart. p.1


Dois (acerca de Kelsen): "Neste ponto julgamos necessários fazemos uma distinção entre a validade da norma e a validade do sistema normativo. A norma possui validade independentemente da aceitação ao não do comportamento humano, já o sistema somente será válido de possuir eficácia, ou seja, se for aceito pelos indivíduos, membros da comunidade25. Assim, quando críticos dos positivismos kelseniano afirmarem que a teoria validade proposta pelo jurista austríaco possibilita justificar um sistema jurídico de um regime político ditatorial, como o do nazismo, por exemplo, se equivocam ao interpretar o conceito de validade de Kelsen. O sistema normativo do nazismo foi válido, porque os indivíduos daquele sistema aceitaram e se comportaram conforme com aquele seja por livre concordância ou pela imposição da força do sistema, isso não importa para Kelsen."


Três: (acerca do realismo em geral, que inclui, no artigo, o norte americano, e o escandinavo, este último representado maioritariamente por Alf Ross:"Para Norberto Bobbio o realismo jurídico não se enquadra na concepção de positivismos jurídico, pois a define direito como “o conjunto de regras que são efetivamente seguidas numa determinada sociedade”, ou seja, consideram “o direito como uma realidade fatual”. Assim, consideram o direito do ponto de vista da eficácia (na esfera do ‘Ser’) e não da validade (na esfera do ‘Dever Ser’), como os jurispositivistas, pois para os realistas “ é direito verdadeiro somente aquele que é aplicado pelos juizes; as normas que procedem do legislador, mas que não chegam ao juiz, não são direito, mas mero flatus vocis”.

Quatro: (acerca de HLA Hart): "Hart elucida a diferenças entre os dois pontos de vista comparando com atitude dos motoristas diante do semáforo. Os motoristas, em geral, conhecem e aceitam as regras de trânsito, assim agindo em conformidade com essas. Até mesmo prevendo e compreendendo o comportamento dos outros motoristas, esse seria o ponto de vista interno. Já o ponto de vista externo explica com a presença de uma observador que não conhece as regras do trânsito. Esse pode se dar de duas maneiras: ponto de vista extremo externo onde o observado apenas registra a esfera do “ser”, o comportamento dos motoristas, não compreendendo o esfera do “dever ser”, as leis de trânsito. Já o outro ponto de vista chamado de externo moderado além da verificação empírica da conduta, também o observador adentra naquela sociedade para compreender o porquê dos motoristas pararem diante do sinal vermelho, ou seja, relaciona à conduta (parar no sinal vermelho) com a regra (o Código de Transito). Mas, a regra não aplica a ele e nem necessita comportar-se de acordo com essa. Hart. op cit. p. 99-101"

Cinco: (ainda HLA Hart): "A regra de reconhecimento, de caráter secundário, consiste na regra suprema do sistema jurídico, que estabelece quais regras devem ser reconhecidas como juridicamente válidas, ou seja, identifica quais regras diretas, regras primárias de obrigação, devem pertencer ao sistema normativo. Essa regra não se apresenta de forma explícita, já que para Hart depende (e decorre) do comportamento dos agentes estatais, dos tribunais e dos particulares. Assim, compreende-se a visão hartiana de direito como prática social, visto que o critério de validade consiste numa conduta social que reconhece, para aquele determinado país e momento histórico, o que é direito válido."

Seis: (considerações finais) Muito importante: "Devido a essa essência empírica o conteúdo da regra de reconhecimento é variável no tempo e no espaço. Podendo, deste modo, incluir vários elementos, seja de natureza formal ou material. Temos aqui um dos pontos mais criticados da teoria hartiana, já que a regra de reconhecimento possibilita que os valores do campo da moral ingressem no campo das ciências jurídicas, ou seja, no direito. O que é totalmente repugnado pelos positivistas clássicos, como Kelsen, e pelos pós-hartianos, como Joseph Raz entre outros."

Para terminar, a referência de que Herbert Lionel Adolphus Hart é actual e provavelmente o meu jurista preferido.

Anulabilidade e sanação

Muito tempo passou desde a última vez que aqui escrevi. E bastante mais passou, se considerarmos a altura em que aqui escrevia regularmente. Não quero, de todo, deixar de o fazer. O tempo tem sido escasso, dividido entre alturas de muito trabalho e outras, poucas, em que a última coisa que quero é escrever sobre direito. Achei ter, agora, um tempinho e disposição para aqui escrever.

Escolhendo um tema que atravessa todo o Direito, falarei do problema da anulabilidade.

O que é a anulabilidade, começa por perguntar-se? É algo estranho, poder-se-ia responder sem fugir muito à verdade. Com efeito, a anulabilidade é um modo de resposta, aliás, é uma resposta per se a uma violação da ordem jurídica. Resposta essa procedente, aliás, dessa mesma ordem. Distinga-se, portanto, a violação do Direito, que consubstancia uma ilegalidade, e a resposta do Direito à mesma, vulgarmente chamada "desvalor". A anulabilidade é então fruto de uma norma secundária que determina que violadas certas normas, deverão esses actos, negócios jurídicos, etc. ser cominados com a invalidade, na modalidade de anulabilidade (existindo, dentro dessa mesma categoria, a nulidade, e regimes mistos. Já fora dela, ou pelo menos diferente, existe a inexistência jurídica e a irregularidade. Ocupemo-nos da figura que dá título ao trabalho.). A anulabilidade tem um regime curioso - por questões de simplificação, falaremos da anulabilidade de actos administrativos. Um acto administrativo anulável produz efeitos como se o não fosse (ou seja, produz efeitos como se fosse válido). No entanto, a sua anulabilidade pode ser arguida, com os efeitos de daí decorrer. Passado um ano, o acto sana-se definitivamente. E é aqui que surge o problema, como veremos adiante. Uma pequena nota para justificar este regime misto: considera a ordem jurídica que é mais importante respeitar a confiança dos particulares, a estabilidade e segurança jurídica do que negar ab initio efeitos ao acto administrativo anulável. Assim, o acto produz a plenitude dos efeitos previstos até "ordem" em contrário.

"O acto sana-se definitivamente". O que quer isto dizer? Depende dos autores. (Se a memória não me falha) Para o Prof. Rebelo de Sousa, o acto sana-se mas não se convalida (ainda que não esteja 100% certo do que isto quer dizer, a ideia que dá é que o acto produz efeitos como se fosse válido, mas estará sempre afectado, em determinados moldes, pelo vício do mesmo). O Prof. Paulo Otero faz uma analogia com um caso julgado ilegal. O Prof. Freitas do Amaral considera o acto legal. O Prof. Rui Machete considera que se extingui o direito de arguir essa anulabilidade em tribunal.

O que dizer destas opiniões? A páginas tantas do Manual de Direito Administrativo, Tomo III, Marcelo Rebelo de Sousa, diz-se que o acto que surja por força de outro acto, acto esse anulável mas já sanado, é válido. Como se concilia esta opinião com a do Prof. Rui Machete? Em princípio, não se concilia. Ou seja, podemos ver por este exemplo que existem outras consequências práticas do modo como se encara a anulabilidade. É de esperar que quem entenda que se extingue o direito de arguir essa anulabilidade em tribunal, não aceite a referida tese de que um acto baseado num anterior anulável já sanado seja válido, pois o acto primeiro nunca deixou de ser inválido. Não cabe aqui defender uma ou outra tese, apenas mostrar que não tratamos de discussões estéreis.

Há várias teses que me parecem apelativas, e vejo em cada uma delas, como não podia deixar de ser, razões para as aceitar. Difícil é, por tanto, escolher uma em detrimento de outra. Pode-se dizer que o acto padecendo de um vício jamais será válido. Por outro lado, também se pode defender que basta a ordem jurídica, através de uma outra norma, uma norma secundária, a considere como válida para ser defensável a tese de que o acto é efectivamente válido. Fica a questão.

Desta vez não falo de Teoria do Direito. Falo de Direito da União Europeia. Que perspectivas para o futuro? Este livro não é um clássico, nem escrito por um clássico. Mas é um grande livro. Li-o num dia, devorei-o. E gostei do que li: qualidade, rigor e perspicácia. Por alguma razão ganhou em 2003 o Prémio Jacques Delors. Recomento vivamente.

Modelos de Legitimação da União Europeia, de António Figueira.

Nota

Aos eventuais leitores (caso existam), o blog tem estado parado por impossibilidade minha. Muita falta de tempo. Quando puder, cá escreverei. Para já, não há data definida. O mais provável é ser a partir de dia 15 de Março.

The concept of law

Disseram-me, há algum tempo já, que o livro "The concept of law" era daqueles livros que não basta ler - é preciso reler e saber de cor. Na altura achei exagerado. É engraçado verificar o quão errado estava.

PS: Quanto à segunda parte da conferência de penal, ainda não tive tempo para acabar o resumo. Vamos ver se tenho nos próximos dias.

Para quem não foi à conferência, e perdeu, diga-se de passagem, uma excelente conferência, eu, como pessoa simpática que sou, publico por este meio uma espécie de resumo, para colmatar essa falta.

O senhor Alonso é um doutorado na escola de Buenos Aires, tão famosa por normativistas analíticos - é impossível não falar da dupla mais conhecida, Carlos Alchourrón e Eugénio Bulygin. É um senhor novo - pelo menos para doutorado -, simpático, e humilde. Humilde quer quanto à postura, quer quanto à sua confiança na lógica, considerando o adjectivo como quantitativo - por outras palavras, o senhor admitiu, como veremos adiante, que a análise analítica, nomeadamente a lógica, não são suficientes para o Direito. O que, quer se subscreva quer não, é a opinião dele, expressa, como disse, humildemente.

Apesar de isto não ter sido dito cabal e inicialmente, mas sim ao longo da exposição, para facilitar os pré-conceitos, podemos dizer que o senhor Alonso foi buscar a lógica de normas de Alchourrón e Bulygin para "encontrar os problemas, para os situar no seu local justo, e para ajudar a pensar uma solução para eles". A MacCormick (não me lembro se era este o nome, mas era um Irlandês que defendia a indução de princípios) foi buscar a indução de princípios como resolução destes. Hart penso que também foi referido, mas não me lembro exactamente em quê. Por fim, o realismo escandinavo de Ross serviu para identificar problemas de inconsistência total/parcial e parcial/parcial, que adiante explicaremos o que são. O propósito da conferência era a contradição entre normas penais, e a busca, analiticamente, de soluções coerentes. Ou seja, problemas de coerência de soluções face às normas. De Kelsen, foi buscar a ideia de que a cada preenchimento de uma previsão normativa, surge aquilo que ele chamou OS - "obligatorio sanción". Em bom rigor, ele fez um parantesis para explicar que esta solução não era totalmente correcta, por existirem normas sem sanção (provavelmente foi aqui que entrou o Hart, com as normas secundárias, mais especificamente as normas secundárias que incidem sobre outras normas secundárias, ou seja, e isto digo eu, conteúdo deôntico aplicado ao próprio mundo deôntico), mas que em direito penal se podia utilizar esse esquema pela especificidade daquele.

A base da conferência são cinco normas.
LVS » OS
GRV » OS
GVM » OS

Traduzindo, LVS corresponde lesões leves, GRV a lesões graves, e GVM a lesões gravíssimas. Assim é a tipificação de lesões no Código Penal Argentino. A seta, "»", representa obviamente uma relação condicional, e o OS o tal "obligatório sanción". Ou seja, se LVS v GRV v GVM é, OS1 (lvs) v OS (gvr) v OS (gvm) deve ser. Até aqui parece tudo claro. Entram agora duas outras variáveis. Cada uma das normas pode ser afectada por uma agravante (AGV) ou atenuante (ATE). Por exemplo, uma lesão que decorra de um plano premeditado é uma lesão agravada, independentemente de ser leve, grave ou gravíssima. Uma lesão derivada de um estado de medo justificado do agente será atenuada, face ao direito, independentemente de, mais uma vez, ser leve, grave ou gravíssima. Temos então imensos esquemas possíveis:


LVS

GRV

GVM

AGR

ATE

C1

+



+

+

C2

+



-

+

C3

+



+

-

C4

+



-

-

C5


+


+

+

C6


+


-

+

C7


+


+

-

C8


+


-

-

C9



+

+

+

C10



+

-

+

C11



+

+

-

C12



+

-

-


Como se nota, existe uma semelhança entre os casos C1 a C4, e os casos C5 a C8 e C9 a C12. Por essa razão, analisou-se apenas a sequência de C1 a C4, que representa as lesões leves, sabendo-se que o mesmo esquema encaixa nas lesões graves ou gravíssimas.

Começando pelo fim, por uma questão de simplificação, no caso 4, C4, existe uma lesão leve (+), mas não existe agravante (AGR) (-), nem existe atenuante (ATE) (-). A resolução é facil, aplicando-se a moldura penal prevista para as lesões leves, ajustando no caso concreto os valores correctos dentro dessa moldura. No caso 3, C3, em que existe agravante (AGR) (+), a solução também não é difícil - esta remissão legal faz com que se aplique o regime das penas agravadas. No caso 2, C2, o mesmo acontece, ainda que ao contrário: a presença de uma atenuante acciona a remissão legal desse regime atenuado. Neste caso, não existe agravante, apenas atenuante.
Como é facil de ver, o grande problema está no primeiro caso, C1. Porque aí existe concorrência de normas, nomeadamente face à mesma lesão, são preenchidas duas previsões que levam a chamar à colação estas remissões - o problema é que elas são, à primeira vista, incompatíveis. Vejamos a seguinte tabela, agora com as molduras penais em que d = dias, m = meses e a = anos.



LVS

GRV

GVM

AGR

ATE

C1

1m/1a



6m/2a

15d/6m

C2

1m/1a



-

15d/6m

C3

1m/1a



6m/2a

-

C4

1m/1a



-

-

C5


1a/6a


3a/10a

6m/3a

C6


1a/6a


-

6m/3a

C7


1a/6a


3a/10a

-

C8


1a/6a


-

-

C9



3a/10a

3a/15a

1a/4a

C10



3a/10a

-

1a/4a

C11



3a/10a

3a/15a

-

C12



3a/10a

-

-


Note-se que este +e um quadro simplificado, na medida em que quer para as agravantes (AGR) quer para as atenuantes (ATE) existem três normas diferentes, sendo que cada uma funciona como remissiva face a um tipo de lesão (leve, grave e gravíssima). Mas penso que se percebe. Ora, como é facil de ver, o problema de determinação da sanção está nos casos em que existe cumulação de normas remissivas, ou seja, agravante e atenuante.

Continua...

Conferência do doutorado da escola de Buenos Aires, Juan Pablo Alonso. É bom ver Bulygin&Alchourrón, Hart e Ross citados numa conferência. Um bom presságio para a FDL.

Nota para mim próprio. Bom tema para escrever - a criação indutiva de princípios através das regras. Relação entre a quantidade de previsões das regras, e a (necessariamente) vasta previsão do princípio em causa derivada da cumulação das previsões das regras.

PS: Presumo que não se perceba nada do que escrevi, mas com tempo, e bem explicado, percebe-se, e é muito interessante até.

Frase interessante

Ainda no mesmo livro, esta frase tem bastante interesse: "a validade é maior normativamente do que o conflito entre normas de diferentes níveis hierárquicos, porque implica sempre mais normas do que as normas em confronto (incluindo mesmo as que definem a hierarquia das normas em presença e que fazem com que uma norma seja superior e outra inferior)"

No sentido dado à concorrência de normas em Direito Internacional Privado, na já citada "Norma de legalidade procedimental administrativa", não existe concorrência de normas no caso dos chamados conflitos de Direito Internacional Privado. E porquê? Sendo os pressupostos para a concorrência de normas 1. dentro de um mesmo conjunto normativo, 2. os factos relevantes de um caso, 3. integram mais do que uma previsão normativa, numa explicação relativamente matemática (de grande rigor e interesse explicativo, para quem a domine), acontece que:

No caso de um conflito de normas interno:
Se a norma1 é a P b, e a norma2 é a Pr b, só uma delas se pode aplicar. Neste caso ambas pertencem a x, conjunto normativo considerado.
No caso de conflito de normas internacionais:
Se a norma1 é a P b, e a norma2 é a Pr b, só uma delas se pode aplicar.Neste caso uma pertence a x, e outra a não-x.

Daqui decorre directamente que o pressuposto 1. não é preenchido no caso de normas internacionais, pelo que apenas o primeiro exemplo é um verdadeiro exemplo de concorrência de normas.

O mesmo se diz de normas cuja dificuldade de selecção dos factos relevantes seja acentuada. Não se trata de concorrência de normas, por não se cumprir o pressuposto 2.. Apenas em casos de não-indefinição do caso jurídico é que pode existir concorrência de normas - caso contrário, a quantidade de normas convocadas é potencialmente infinita.

Acerca do pressuposto 3., por ser bem mais complicado de explicar, deixo para outra altura. (eventualmente).

EDIT: Pensando bem, face à concorrência espacial, não é muito liquido que assim seja, por razões que ainda não sei explicar. Desenvolvimentos quando tiver tempo.

Interpretação II

Nem vou estar a alterar a formulação, prefiro citar directamente* a pequena passagem do "Norma de legalidade procedimental administrativa", já conhecido no blog. E reza assim: "A proposição de determinação semântica tem também de utilizar, por isso, uma forma de comunicação, pelo que a sua passagem de um estádio de operação intelectual pensada para uma afirmação que revela um determinado conteúdo pressupõe, naturalmente, a reutilização da linguagem. A determinação semântica das normas, tanto no seu contexto científico, como em qualquer outro, como é evidente, traduz-se consequentemente numa substituição de formulações, na qual a tradução do enunciado normativo é recomposta em novo exercício de linguagem, seja numa reformulação linguística precisa, seja através, por exemplo, da notação lógica. Daqui decorre, assim sendo, que a proposiçao só contém uma dimensão explicativa relevante nos casos de incerteza semântica, pois fora destes, como se verifica correctamente, não será muito mais do que a repetição do enunciado da norma, mais ou menos nos mesmos termos."

* Se o fizesse, não estaria a fazer senão a referida repetição enunciativa. :)

O termo interpretação como incorrecto por dispersão denotativa (conceito polissémico), e pelo que percebi, deve ser reduzida, e ao se produto chamar-se-à determinação semântica das normas.
Tema possivelmente a desenvolver. Hipótese sustentada por David Duarte baseado em Tarello e Guastini. Parece ter interesse aquando da determinação da fallnorm, ou a norma do caso, ou na criação de normas de decisão.

Parece-me, sem ter ainda certezas, que a única maneira de regular condutas é coercivamente. No entanto, e como sabemos, graças a Hart, existem também normas que incidem sobre outras normas, não incidindo sobre condutas - incidem sobre um mundo (o mundo deôntico) no qual não faz sentido o termo coercibilidade. Queria conseguir "reduzir dogmaticamente" a relação entre as normas secundárias e primárias e o binómio coercibilidade/desvalores.

Mas pensando bem algo está errado, porque uma norma que revoga outra pode perfeitamente ser uma norma secundária a revogar uma primária, e estamos ainda no mundo deôntico e não no mundo real. Daí que o termo desvalor tenha de ser alargado, para incluir normas que fixam interpretações, normas de revogação, suspensão, etc - talvez utilizando o conceito de "alteração do mundo deôntico".

Ou então, como "last shot", talvez a seguinte explicação valha a pena ser vista com mais atenção: existem normas secundárias que estabelecem uma sanção para o incumprimento de uma norma primária, e este binómio é a parte coerciva do Direito, e existem normas secundárias que alteram o mundo deôntico (já passei á frente a ideia de desvalor, e alargo-a para a ideia de alterar o mundo deôntico). Esta é a ideia a pensar e a estudar, juntamente com a tentativa de verificar se esta definição esgota ou não o ordenamento.

Há erros no blog!

Há erros no blog - além, claro, daqueles que são opiniões minhas, discutiveis e portanto talvez erradas, há algo que é mesmo um erro. Nomeadamente algo como isto:

"... o direito é coercivo em termos de normas primárias, e não é coercivo em termos de normas secundárias - nestas existe uma espécie de """coercibilidade""" própria do mundo deôntico, o mundo do dever ser, chamada desvalor..."

A ideia não perde o interesse, simplesmente a sua formulação está errada. A coercibilidade advém das normas secundárias que formam um binómio com as normas primárias, "emprestando-lhes" coercibilidade. Bem, quando tiver tempo explico melhor. Neste momento considerem ideias do tipo acima referido suspensas. E sim, já tenho formulação alternativa para salvar a ideia. Obrigado pela chamada de atenção.

Se a importância desta distinção é inegável, por várias razões, é também importante definir quais (neste caso qual) a(s) diferença(s) entre estes dois tipos de normas. Como em tudo na Ciência, para delimitar algo é preciso encontrar um critério adequado. Neste caso o critério é o da incidência da previsão. Ou seja, o quid que preenche a previsão da norma. A previsão das normas primárias é preenchida por condutas humanas. A previsão das normas secundárias é relativa ao mundo deôntico, ao mundo do dever ser. Daí que, e pegando no exemplo da "Norma de Legalidade Procedimental Administrativa", a norma "Se chover, o acto x é revogado" é uma norma primária, porque a previsão é preenchida por acontecimentos do mundo real. (nota para mim: uma questão interessante seria ver o tipo de discricionariedade que a previsão de incerteza que o preenchimento das normas primárias comporta face à das normas secundárias [incerteza em vez de discricionariedade porque, em rigor, não há discricionariedade na previsão]). Já uma norma que determine que "a revogação do acto x determina a revogação do acto y" é uma norma secundária, penso eu, precisamente por a previsão incidir sobre o mundo deôntico (ainda que o acto de revogação seja uma conduta, o importante é o que ele significa no mundo deôntico). E podemos complicar o caso, numa modalidade que Hart não previu: "a revogação do acto revogatório B determina a repristinação do acto A" - aqui temos uma norma secundária a incidir sobre outra norma secundária, norma esta que, repete-se, não deixa de ser uma norma secundária por incidir sobre uma norma secundária.

Isto está confuso ainda, rever e corrigir. Não está fiável, de todo (em princípio)

Suécia e mais bibliografia

De volta da Suécia. Muita coisa para escrever, mas ficará para um momento posterior. Agora tenho um conselho de leitura.

Encontrei um livrito, de A. Santos Justo, chamado "Nótulas de História do Pensamento Jurídico". É muito básico, demasiado até, mas sintetiza as várias posições sobre o Direito - de forma demasiado breve e simplista, é verdade, mas com as vantagens que isso traz para quem não quer perder muito tempo, ou não o tem, e quer ter uma ideia das várias hipóteses existentes através dos tempos. Menos saudável é a crítica leviana, pouco aprofundada e de todo não fundamentada das posições através dos tempos. Ainda assim, não faz mal dar uma olhadela.

Um bocado mais complexo é o "Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito", de Claus Wilhelm Canaris, com introdução e tradução de A. Menezes Cordeiro. Não que me reveja muito na posição do livro (também não posso adiantar-me muito na medida em que ainda só li metade), mas é um bom livro para quem goste de Direito Privado. De resto, todos os que tenho encontrado da Calouste Gulbenkian sobre Direito são bons livros - em rigor, (boas) traduções de bons livros.


Daqui a algum tempo volto aos posts, provavelmente sobre algum dos autores referidos uns quantos posts abaixo, ou ideias novas que surgiram da organização social sueca.

Estocolmo


De férias. Até Sábado.

Em vésperas de ir para Estocolmo descansar =P

Uma das grandes, e a meu ver a melhor em teoria - porque na prática ela é feita sem se conhecer o que se critica - é a suposta falta de ligação entre o universo normativo, a bíblia positivista, e a realidade, a vivência social, etc. Em primeiro lugar, não posso deixar passar com tanta ligeireza o que disse em cima - a maior parte das pessoas que criticam estas visões não as conhece. Não percebe mesmo de que é que se fala. Positivismo e Kelsen são a mesma coisa, os positivistas não têm ideias de Justiça, etc etc etc. (até o próprio Kelsen escreveu sobre a ideia dele de Justiça! A diferença está em se achar (ou não) que essa ideia própria serve para uma pluralidade de destinatários indeterminados). Positivismo e Kelsen têm muito a ver claro, e foi a partir dele, do seu "extremismo teorético" que tudo surgiu. Mas há muitos positivistas que criticam a grundnorm, que não consideram todo o Direito coercivo, etc etc. O que não quer dizer que tenham razão, isso é outra questão. Ou que não a tenham. O que importa mostrar é que as correntes normativistas e positivistas (vocábulos que não são sinónimos mas não me recordo agora exactamente da diferença) não são uma corrente subsidiária de alguns teóricos que gostam de Matemática. E nem são uma corrente una.

Continuando, vendo que as correntes analíticas trataram muito bem os princípios, e para fugir à critica, ou melhor, para mostrá-la como relativamente improcedente, vamos atentar no modo como se densificam os princípios. Os princípios estão positivados de forma muito básica - ex: na Constituição está consagrado o princípio da igualdade. Ora, isto nada nos diz. E no entanto, este princípio tem o seu conteúdo bastante consensual e organizado, fruto da história que ele tem, no sentido do "modo como tem vindo a ser entendido". Fruto da doutrina e da jurisprudência (tenho de referi-la, apesar da relativa aversão que tenho ao facto da jurisprudência assumir certos trabalhos deste tipo), os princípios são densificados. E o modo como estes são vistos reflectem necessariamente as suas visões pessoais - não pessoais no sentido de uma única pessoa, mas pessoais no sentido do sentimento geral das pessoas face ao que são os valores da sociedade naquele momento. E há ainda uma grande vantagem: a história serve como ajuda e como substracto, mas face à interpretação actualista objectivista da lei, latu sensu, esta como que ganha vida após estar positivada, pelo que pode ser interpretada consoante o que se acredita correcto agora, e não na altura da sua feitura.

Agora lembrei-me de mais um problema: a ponderação que o interprete aplicador faz dos princípios, ou seja, a sua intensidade de aplicação e a subsunção ou não destes ao caso concreto é influenciada também por estas mesmas razões? É um problema..

Umas quantas ideias sobre o Direito. O Direito é constituido por normas primárias e secundárias (diz o Hart, e bem). Apenas as normas primárias regulam condutas humanas. Daí que alguns autores considerem, e percebe-se o ponto de vista, que o Direito não regula conduta. O Direito faz algo mais do que isso, ou pelo menos precisa de algo mais do que isso para as conseguir regular. Pelo menos é essa a minha visão, a de que o Direito é finalisticamente orientado para a regulação de condutas humanas, e nada mais (e essa regulação em lato sensu, na medida em que dentro da regulação existem várias hipóteses, desde a imposição ou proibição de uma conduta per si à imposição de várias condutas com vista Á produção de efeitos, etc - as hipóteses são infindáveis). No entanto, existem outras regras, as regras secundárias, cuja função mediata é também regular a conduta humana, mas a sua função imediata é regularem outras normas. Em bom rigor, elas só têm função imediata, não existe função mediata - o que existe é um resultado, ou seja, quando estas normas secundárias regulam aspectos nas normas primárias permitem que estas produzam o seu efeito na regulação da conduta humana.
Existem, no entanto, mais ideias importantes, e a reter, sobre as normas primárias e as secundárias. O que vem a seguir é uma generalização, com todo o perigo que daí advém, mas também, caso esteja certa, com todas as vantagens na medida em que todo o conhecimento é generalização, mas na exacta medida em que não seja exagerada nem se encontre nenhum caso que caia fora dessa generalização. Continuando, o que eu acho é que as normas primárias são todas coercivas - o que significa ser correcta a seguinte proposição: todas as normas dirigidas à regulação da conduta humana são coercivas. Então e quanto às normas secundárias? Essas são dirigidas às normas primárias, e obrigam. Caso não sejam cumpridas, serão accionadas outras normas secundárias que sancionam as primárias com um desvalor. E não procede dizer então que nem todas as normas secundárias são sancionatórias em termos de implicarem um desvalor, pelo facto de terem de "chamar" umas terceiras - está mais que provado que, face à diferença entre enunciado normativo e norma, pode perfeitamente existir uma norma espalhada por vários enunciados normativos, no qual um tenha a previsão e o outro a estatuição (sendo que o operador deôntico também estará algures). Ou seja, em síntese, temos que as normas primárias atacam o seu desrespeito com sanções coercivas, e as secundárias com desvalores (invalidade, etc).

A seguir, o "cheirinho" jusnaturalista na densificação de princípios para os positivistas. Ou seja, a densificação de princípio como elo de ligação entre a norma e o Direito, salvando assim os positivistas de algumas críticas.

Bibliografia

Com bastantes livros novos, adianto já as possíveis influências para posts a partir de meio de Fevereiro.

  • Aulius Aarnio
  • Alf Ross
  • Eugenio Bulygin e Carlos Alchourrón
  • Mais um que não me lembro o nome (EDITADO: Santiago Nino!)
State of the art jurídico, of course.

Sabendo que vai ser difícil, aqui vai. E veja-se o "direito privado" a entrar neste blog...

Porque é que não se deve distinguir, para efeitos de responsabilidade civil, a negligência consciente da negligência inconsciente e, por outro lado, se deve distinguir entre o dolo directo, o dolo necessário e o dolo eventual?

Define-se a negligência consciente como uma conduta na qual o agente está ciente de que é possível que o facto causador de dano venha a acontecer, derivado da sua conduta, mas actue sem dar importância a isso, eventualmente convencendo-se de que não irá acontecer, e a negligência inconsciente pela não percepção por parte do lesante que a sua conduta possa lesar outrem. Ora, esta distinção, apesar de ser retirada do artigo 14º e 15º do C.P., tem de ser vista com muito cuidado. Com que explicação deverá ser punida mais violentamente uma pessoa que, pensando que por guiar em excesso de velocidade, ainda assim o faça, do que uma que nem pense nisso? Uma pessoa completamente irresponsável, apesar de completamente sã, seria responsabilizada em menor grau do que uma pessoa que achasse que essa sua velocidade excessiva, em princípio, não causaria danos a ninguém, apesar de, por ser capaz, ter pensado sobre isso. Claro que o Direito pode exigir de cada um o que cada um pode dar, mas essa máxima aplicar-se-ia apenas a pessoas manifestamente incapazes. Como dizia Heinrich Horster, o Direito não deve beneficiar os incautos e os imprevidentes. Porque, note-se, em termos de danos, o resultado será o mesmo - o que se trata aqui (e bem, visto que esse ponto também deve relevar) é uma valoração subjectiva do estado do sujeito. O problema é que essa valoração é demasiado subjectiva para funcionar como critério de gradação da ressarcibilidade.

Agora, seguindo outra máxima, a de não criticar sem apresentar sugestões, a negligência inconsciente deve ser substituida pela ideia de homem médio, por uma valoração objectiva daquelas circunstancias, em que o interprete aplicador terá de verificar se, naquelas circunstâncias, era ou não exigivel que o lesante tivesse pensado nelas. Se não, estamos perante negligência inconsciente. Se sim, estamos perante negligência consciente - alteração esta que acarreta um acrescento à negligência inconsciente - esta passa a englobar não só os casos em que o lesante pensou na hipótese do dano e nada fez que alterasse a sua conduta, mas também nos casos em que o devia ter feito, por lhe ser exigivel tal.

Já quanto às modalidades de dolo, nada há a apontar na sua classificação: o dolo directo representa a conduta do agente directamente e propositadamente dirigida a causar o dano, o dolo necessário a conduta que, não tendo como fim o causar o dano, implica-o e o agente aceita-o totalmente, e o dolo eventual, no qual o agente verifica que é possível que a sua conduta cause um dano, mas conforma-se com a sua eventual verificação e age na mesma.

823 I do BGB

Alguém me pode explicar o porquê do 823, I do BGB enunciar, taxativamente, uma série de direitos cuja violação implica o correspondente ressarcimento do dano causado, e no fim deste, como que destruindo tudo o que fez antes, adicione a clausula aberta ou conceito indeterminado "e outros direitos"? Só se o legislador achou mesmo por bem remeter para a doutrina e a jurisprudência quais os direitos que devem constar o preceito, ou considerou que era uma área na qual se previa uma grande evolução pelo que salvaguardou a possibilidade de preenchimento desse preceito através dessa "válvula de escape". Mas a verdade é que o que acontece é a destruição total da natureza taxativa-enunciativa do preceito, nada ao estilo técnico e avançado do direito alemão (I guess).

Sem surpresa, o 483º do CC português é a soma do 823 I e II alemão. De qualquer modo, antes imitar os alemães no que eles são bons.

Personal reminder: tenho mesmo de aprender alemão. Começa a fazer falta.

Pergunta

Pergunta a mim próprio (pleonasmo?): para que serve este blog?

Depois de tanto falar de Hart, e da sua norma de reconhecimento, pergunta-se: porque é ela importante? Qual a relevância de saber de onde vem o Direito, como é que ele se torna legítimo, etc?

É uma questão até bastante simples mas para a qual me parece ser necessária uma resposta para completar os posts anteriores.

Basicamente o que se passa é que para o Direito ser visto como uma ciência, que o é - ou, de modo mais correcto, para a análise do Direito constituir uma ciência, é necessário que se processe de forma lógica e científica, por muito pleonásmico que possa parecer. Com esse intuito, Kelsen constrói o Direito uma uma série de premissas baseadas noutras, ou, mais uma vez, de modo mais preciso, uma série de normas jurídicas fundadas numa outra, hierárquicamente superior. O problema é quando chegamos ao topo, e verificamos que essa cascata, que percorremos agora em sentido ascendente, tem de parar. E Kelsen fá-lo com a grundnorm, a norma fundamental, hipotética e pressuposta. Não existe, não tem qualquer conteúdo ou função (pelo menos assim me parece) que não seja validar a norma imediatamente abaixo na cadeia hierárquica (normalmente, a constituição). O problema desta construção é a de que o Direito não apenas regula condutas, mas surge também da actividade humana e é nela que se funda e legitima. E as críticas feitas à concepção de Kelsen por ser demasiado formalista e afastada da realidade social subjacente ao Direito são vencidas por Hart, sem se perder essas mesmas inferências lógicas de norma em norma, formando um sistema lógico, que pode ser analisado como ciência.

O que Hart propõe é que essa norma fundamental, a norma original do sistema, aquilo a que ele chama norma de reconhecimento, seja fundada na convicção da população de que aquela pessoa, aquele órgão, o que for, deve ter legitimidade para legislar. E essa norma põe, no sentido técnico do termo, o sistema em acção. Ou seja, a Constituição ou qualquer norma que seja a norma hierarquicamente mais elevada (dentro das normas com conteúdo efectivo de conformação social) é legitimada e "posta" pela norma de reconhecimento. Assim, explica-se com um substracto social o sistema jurídico, salvaguarda-se a sua abordagem positivista e normativista sem pôr em causa o Direito como ordem do Homem para o Homem. Hart é assim dos maiores génios do Direito, ainda que, como cumpre dizer, as suas concepções provavelmente não teriam sido possível sem o extremismo de Kelsen que permitiu a expansão de horizontes em termos de definição do direito pela corrente positivista e normativista.

Fica a explicação, não muito precisa nalguns termos, mas de simples compreensão.

O Direito é coercivo

Esquecendo as divergências sobre o conceito de coação, coerção, etc, vou defender a coercibilidade de todo o direito. Ou seja, a premissa base é a de que todo o direito é coercivo. Para o fazer, preciso de definir coercivo, e definir esse conceito com alguns ajustes face à doutrina tradicional, na medida em que a coercibilidade a que aqui me refiro não é necessariamente a uso da força. Pergunte-se, então, o porquê de usar este termo. De facto, talvez não seja o mais correcto à partida, mas adiante perceber-se-à o porquê.

Toda a conduta desconforme ao Direito vai levar, ou devia levar, na medida em que o Direito trata do sistema ideial - o facto de alguém matar outrem e não ser descoberto não quer dizer que não exista punição para essa conduta - a uma aplicação de uma sanção coerciva. Os exemplos da praxe apresentam-se de fácil compreensão. Se A mata, A é punido, que é o mesmo que dizer que se a previsão é preenchida pela conduta, a estatuição é um imperativo lógico, e ocorre automaticamente. Relembre-se ainda, quanto à discricionariedade, o porquê de não existir discricionariedade na previsão das normas: por muito que a previsão contenha conceitos indeterminados, a decisão final vai ser sempre de sim ou não - a subsunção do caso concreto à norma acciona ou não a estatuição. Em face de conceitos indeterminados claro que o aplicador da norma verá o seu espaço de manobra aumentar, mas nem por isso deixa de se poder dizer que a situação concreta preenche a previsão, e verifica-se a estatuição, ou, pelo contrário, a previsão não é preenchida e a estatuição não se verifica. Continuando, nestes exemplos básicos é facil ver que a ordem é coerciva.

Em exemplos mais "civilistas", a questão complica um pouco. Se A tem uma obrigação e não a cumpre, é ordenado a A que pague uma indemnização. Se A não o fizer, o seu património será vendido para a obtenção de liquidez para saldar a dívida. Esta internveção consiste sempre no uso da força, ou seja, a venda de bens de A é obviamente conseguida conquanto se utilizem meios coercivos (ou conquanto haja a hipótese de os utilizar de A resistir).

Se A e B celebram um contrato formalmente insuficiente, esse contrato padece de um desvalor. Esse desvalor, se não está directamente ligado à coercibilidade, está sempre indirectamente ligado a ela, na medida em que, face à ordem jurídica, esse contrato não existirá, ou existirá viciado, e a sua validade está condicionada. O que implica que o exercício dos direitos imanentes desse contrato não poderá ser exercido com o apoio da ordem jurídica, ou seja, a ordem jurídica não empresta a sua força coerciva para cumprimento desse contrato. O racicionio aqui é ao contrário, na medida em que a ordem jurídica não actua coercivamente precisamente porque excluiu do sistema jurídico esse acto viciado, ou pelo menos excluiu-o na medida do seu desvalor.

A própria autonomia privada deriva de uma permissão normativa genérica de produção de efeitos jurídicos. Fora dela, os efeitos ou são proibidos, ou não são jurídicos. Aos não jurídicos a ordem jurídica nada tem a dizer, e aos proibidos ela atribui-lhes um desvalor que as marca como portadoras de um vício, que limitará a sua produção de efeitos, por exemplo.

As normas não são vinculativas porque são. E está na altura de rever a concepção que apresentei acima. De facto, esta coercibilidade de que falei é algo mais, é uma coercibilidade num sentido muito lato, consubstanciado em desvalores de normas, quando estas desrespeitem outras normas, ou uma sanção coerciva de condutas, quando estas vão contra as normas. Um acto legislativo que não cumpra os requisitos normativos nem entrará em vigor.

O Direito é para ser cumprido porque tem por trás dele o monopólio coercivo do Estado. Tal como Hart explica, numa formulação não isenta de possíveis críticas (críticas essas que até eu formulo), mas ainda assim provavelmente a melhor concepção existente até hoje, o Direito provém duma norma de reconhecimento, pela qual a população de um certo Estado permite à pessoa X, ao órgão Y, etc, legislar. E a partir daí tudo funciona num sistema lógico, sob a égide dum monopólio coercivo que é detido pelo destinatário dessa norma de reconhecimento, dessa norma que mostra que a população confia a esse destinatário o seu futuro em termos de regulação jurídica. Em suma, toda a conduta desconforme ao Direito resultará num desvalor da mesma, se esta tiver relevância jurídica, ou eventualmente numa restituição da paz jurídica através da força, em última instancia.

(A precisar de ser reorganizado e pensado, mas para já serve)

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