Falo hoje do conceito de prejuízo, especificamente o do artigo 149.º /1º do C.C.

ARTIGO 149º

(Actos praticados no decurso da acção)

1. São igualmente anuláveis os negócios jurídicos celebrados pelo incapaz depois de anunciada a proposição da acção nos termos da lei de processo, contanto qua a interdição venha a ser definitivamente decretada e se mostre que o negócio causou prejuízo ao interdito.

(http://www.portolegal.com/CodigoCivil.html)

Suponhamos que efectivamente a interdição vem a ser definitivamente decretada, e tudo o resto que preencha a previsão da norma para accionar a estatuição, e as dúvidas surgem quanto ao conceito de prejuízo. Como concretizá-lo?

Parece óbvio que qualquer má compra, no sentido do preço ser superior ao valor que o produto ou serviço tem para o incapaz cabe neste conceito. O que proponho é a resolução de um caso limite. E posso improvisar:

"António abusa de bebidas alcoólicas e estupefacientes, além de outros vícios. Prevê-se que seja declarado como incapaz, pelo hábito de gastar ordenados inteiros em festas e luxos incomportáveis para o seu rendimento. Não obstante, um dia António faz um óptimo negócio. Compra um carro antigo, cujo valor comercial é de 100.000 euros por apenas 50.000 euros. No entanto, é um carro que apenas consegue vender encontrando um comprador especializado, interessado nesse tipo de mercados. Não obstante ter feito um óptimo negócio, tem agora todo o seu dinheiro "encravado" nessa compra. Quid iuris?"

Parece-me óbvio que o conceito de prejuízo tem de ser considerado latu sensu, e até numa perspectiva duplamente subjectiva: a) atendendo à situação do agente; b) atendendo aos factos que rodeiam a compra (no caso, o facto de ser difícil vender o carro). Parece-m, então, (e digo-o mesmo sabendo que a solução inversa pode trazer alguns problemas de tutela de confiança da contraparte) que no conceito de prejuízo não pode caber apenas uma estrita comparação entre o preço pago e o valor do objecto, mas sim um juízo de adequação e razoabilidade face à falta de discernimento do comprador com este tipo de anomalia.

O mundo antigo. E o novo.

Dizia Goethe: "Com Voltaire, o mundo antigo acaba. Com Rousseau, é o mundo novo que começa."

Esperando por uma conferência sobre o Tratado de Lisboa (muito interessante, num estilo descontraído e intimista, protagonizada por um acessor de Durão Barroso e o Presidente do Instutuo Português de relações Internacionais), "folheei" as prateleiras da Almedina. E encontrei, sem bem saber como, o abaixo referido livro "Direito Público e Sociedade Técnica". Um livro que queria ter há muito tempo, e pondero ler outra vez. Mais uma vez, reitero a excelência do livro. Custou 11 euros. Espero daqui a uns tempos ter o livro autografado.


Comentava outro dia que tinha pena de não encontrar à venda o livro "Direito Público e Sociedade Técnica", um livro jurídico que se lê como um romance. Devorei-o num instante, mas nunca o encontrei à venda. Livro mesmo muito bem escrito e interessante, num estilo despretensioso e agradável. Foi reeditado em 2008, pela Tenacitas. Vale mesmo a pena comprar. É o que eu vou fazer (se o conseguir encontrar).



"A reedição desta obra-prima da literatura jurídica portuguesa é, por si só, um acontecimento jurídico, e cultural. Pouco a pouco, esta obra foi rareando nos escaparates e a sua referência na literatura juspublicística era cada vez mais um registo indirecto colhido noutras leituras. Acontece, até, que, em muitos casos, o motivo da referência era mais a beleza e a plasticidade da prosa de Rogério Soares do que a profunda e meditada análise do Mestre. O "sono da princesa da fábula” ganhou, neste contexto, moda de citação. Este "sono” transportava uma das mais penetrantes suspensões reflexivas sobre o estado da arte da ciência do direito público nos finais da década de sessenta do século passado. Ao colocar-se de novo à disposição do público culto os questionamentos teóricos e doutrinários do Mestre de Coimbra, facilmente nos damos conta que a ciência do direito precisa hoje de um novo olhar semelhante ao que ele nos proporcionou há mais de quarenta anos. Dir-se-ia que seria legítimo pedir a Rogério Soares para voltar à publicidade crítica e reescrever o sono e o sonho da princesa. Sono, afinal, com as mesmas angústias e perplexidades. " por José Joaquim Gomes Canotilho.

Para quem não tenha paciência de ler Kelsen, Ross e Hart (a famosa trilogia), e sinta que, para criticar, é preciso conhecer, aqui está um bom começo.

Passagens retiradas de um artigo de Juliano Aparecido Rinck:
"O positivismo jurídico na analise da doutrina jurídico-filosófica italiana: Desmistificando o conceito de Direito da teoria positivista"


Um: "Il fatto è che l’espressione ‘positivismo giuridico’ non individua un’única concezione del diritto, ma una pluralità di concezioni tra loro(almeno apparentemente) non sempre compatibili."

SCHIAVELLO, Aldo. Il posotivismo giuridico dopo herbert. l.. a. hart. p.1


Dois (acerca de Kelsen): "Neste ponto julgamos necessários fazemos uma distinção entre a validade da norma e a validade do sistema normativo. A norma possui validade independentemente da aceitação ao não do comportamento humano, já o sistema somente será válido de possuir eficácia, ou seja, se for aceito pelos indivíduos, membros da comunidade25. Assim, quando críticos dos positivismos kelseniano afirmarem que a teoria validade proposta pelo jurista austríaco possibilita justificar um sistema jurídico de um regime político ditatorial, como o do nazismo, por exemplo, se equivocam ao interpretar o conceito de validade de Kelsen. O sistema normativo do nazismo foi válido, porque os indivíduos daquele sistema aceitaram e se comportaram conforme com aquele seja por livre concordância ou pela imposição da força do sistema, isso não importa para Kelsen."


Três: (acerca do realismo em geral, que inclui, no artigo, o norte americano, e o escandinavo, este último representado maioritariamente por Alf Ross:"Para Norberto Bobbio o realismo jurídico não se enquadra na concepção de positivismos jurídico, pois a define direito como “o conjunto de regras que são efetivamente seguidas numa determinada sociedade”, ou seja, consideram “o direito como uma realidade fatual”. Assim, consideram o direito do ponto de vista da eficácia (na esfera do ‘Ser’) e não da validade (na esfera do ‘Dever Ser’), como os jurispositivistas, pois para os realistas “ é direito verdadeiro somente aquele que é aplicado pelos juizes; as normas que procedem do legislador, mas que não chegam ao juiz, não são direito, mas mero flatus vocis”.

Quatro: (acerca de HLA Hart): "Hart elucida a diferenças entre os dois pontos de vista comparando com atitude dos motoristas diante do semáforo. Os motoristas, em geral, conhecem e aceitam as regras de trânsito, assim agindo em conformidade com essas. Até mesmo prevendo e compreendendo o comportamento dos outros motoristas, esse seria o ponto de vista interno. Já o ponto de vista externo explica com a presença de uma observador que não conhece as regras do trânsito. Esse pode se dar de duas maneiras: ponto de vista extremo externo onde o observado apenas registra a esfera do “ser”, o comportamento dos motoristas, não compreendendo o esfera do “dever ser”, as leis de trânsito. Já o outro ponto de vista chamado de externo moderado além da verificação empírica da conduta, também o observador adentra naquela sociedade para compreender o porquê dos motoristas pararem diante do sinal vermelho, ou seja, relaciona à conduta (parar no sinal vermelho) com a regra (o Código de Transito). Mas, a regra não aplica a ele e nem necessita comportar-se de acordo com essa. Hart. op cit. p. 99-101"

Cinco: (ainda HLA Hart): "A regra de reconhecimento, de caráter secundário, consiste na regra suprema do sistema jurídico, que estabelece quais regras devem ser reconhecidas como juridicamente válidas, ou seja, identifica quais regras diretas, regras primárias de obrigação, devem pertencer ao sistema normativo. Essa regra não se apresenta de forma explícita, já que para Hart depende (e decorre) do comportamento dos agentes estatais, dos tribunais e dos particulares. Assim, compreende-se a visão hartiana de direito como prática social, visto que o critério de validade consiste numa conduta social que reconhece, para aquele determinado país e momento histórico, o que é direito válido."

Seis: (considerações finais) Muito importante: "Devido a essa essência empírica o conteúdo da regra de reconhecimento é variável no tempo e no espaço. Podendo, deste modo, incluir vários elementos, seja de natureza formal ou material. Temos aqui um dos pontos mais criticados da teoria hartiana, já que a regra de reconhecimento possibilita que os valores do campo da moral ingressem no campo das ciências jurídicas, ou seja, no direito. O que é totalmente repugnado pelos positivistas clássicos, como Kelsen, e pelos pós-hartianos, como Joseph Raz entre outros."

Para terminar, a referência de que Herbert Lionel Adolphus Hart é actual e provavelmente o meu jurista preferido.

Anulabilidade e sanação

Muito tempo passou desde a última vez que aqui escrevi. E bastante mais passou, se considerarmos a altura em que aqui escrevia regularmente. Não quero, de todo, deixar de o fazer. O tempo tem sido escasso, dividido entre alturas de muito trabalho e outras, poucas, em que a última coisa que quero é escrever sobre direito. Achei ter, agora, um tempinho e disposição para aqui escrever.

Escolhendo um tema que atravessa todo o Direito, falarei do problema da anulabilidade.

O que é a anulabilidade, começa por perguntar-se? É algo estranho, poder-se-ia responder sem fugir muito à verdade. Com efeito, a anulabilidade é um modo de resposta, aliás, é uma resposta per se a uma violação da ordem jurídica. Resposta essa procedente, aliás, dessa mesma ordem. Distinga-se, portanto, a violação do Direito, que consubstancia uma ilegalidade, e a resposta do Direito à mesma, vulgarmente chamada "desvalor". A anulabilidade é então fruto de uma norma secundária que determina que violadas certas normas, deverão esses actos, negócios jurídicos, etc. ser cominados com a invalidade, na modalidade de anulabilidade (existindo, dentro dessa mesma categoria, a nulidade, e regimes mistos. Já fora dela, ou pelo menos diferente, existe a inexistência jurídica e a irregularidade. Ocupemo-nos da figura que dá título ao trabalho.). A anulabilidade tem um regime curioso - por questões de simplificação, falaremos da anulabilidade de actos administrativos. Um acto administrativo anulável produz efeitos como se o não fosse (ou seja, produz efeitos como se fosse válido). No entanto, a sua anulabilidade pode ser arguida, com os efeitos de daí decorrer. Passado um ano, o acto sana-se definitivamente. E é aqui que surge o problema, como veremos adiante. Uma pequena nota para justificar este regime misto: considera a ordem jurídica que é mais importante respeitar a confiança dos particulares, a estabilidade e segurança jurídica do que negar ab initio efeitos ao acto administrativo anulável. Assim, o acto produz a plenitude dos efeitos previstos até "ordem" em contrário.

"O acto sana-se definitivamente". O que quer isto dizer? Depende dos autores. (Se a memória não me falha) Para o Prof. Rebelo de Sousa, o acto sana-se mas não se convalida (ainda que não esteja 100% certo do que isto quer dizer, a ideia que dá é que o acto produz efeitos como se fosse válido, mas estará sempre afectado, em determinados moldes, pelo vício do mesmo). O Prof. Paulo Otero faz uma analogia com um caso julgado ilegal. O Prof. Freitas do Amaral considera o acto legal. O Prof. Rui Machete considera que se extingui o direito de arguir essa anulabilidade em tribunal.

O que dizer destas opiniões? A páginas tantas do Manual de Direito Administrativo, Tomo III, Marcelo Rebelo de Sousa, diz-se que o acto que surja por força de outro acto, acto esse anulável mas já sanado, é válido. Como se concilia esta opinião com a do Prof. Rui Machete? Em princípio, não se concilia. Ou seja, podemos ver por este exemplo que existem outras consequências práticas do modo como se encara a anulabilidade. É de esperar que quem entenda que se extingue o direito de arguir essa anulabilidade em tribunal, não aceite a referida tese de que um acto baseado num anterior anulável já sanado seja válido, pois o acto primeiro nunca deixou de ser inválido. Não cabe aqui defender uma ou outra tese, apenas mostrar que não tratamos de discussões estéreis.

Há várias teses que me parecem apelativas, e vejo em cada uma delas, como não podia deixar de ser, razões para as aceitar. Difícil é, por tanto, escolher uma em detrimento de outra. Pode-se dizer que o acto padecendo de um vício jamais será válido. Por outro lado, também se pode defender que basta a ordem jurídica, através de uma outra norma, uma norma secundária, a considere como válida para ser defensável a tese de que o acto é efectivamente válido. Fica a questão.

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